MATÉRIAS

O tesouro esquecido de Rick Ferreira

Entre um valioso souvenir para os fãs mais hardcore e uma ilha inexplorada por muita gente, Porta das Maravilhas permanece conservado. O único disco solo completo de Rick Ferreira guarda preciosidades que não se abalaram com o tempo. Nos permite até uma metáfora com seu título, já que o repertório está repleto de belas melodias, solos inspirados, poesia e uma sonoridade ímpar. Só maravilhas!

A história do álbum começou em 1975, quando a música Retalhos e Remendos entrou na trilha sonora da novela Cuca Legal (TV Globo). Aproveitando a visibilidade, a gravadora Philips/Phonogram apostou num compacto com essa mesma canção e Meu Filho, Meu Filho, compostas por Rick junto com Paulo Coelho.

Àquela altura, o guitarrista carioca já era um companheiro firme de Raul Seixas nos trabalhos em estúdio. Isso somado ao hit moderado de Retalhos e Remendos jogou uma faísca de ascensão no ar. Porém, a coisa logo esfriou, e a gravadora perdeu a empolgação. Ali começava o difícil percurso do que viria a ser o disco de Rick Ferreira.

O material saiu depois de tensas conversas. Esse ambiente minou decisivamente as projeções para Porta das Maravilhas. Sem fôlego suficiente, o registro não durou mais que sua tímida campanha de divulgação.

Uma pena, já que se trata de uma obra realmente boa. Inclui uma releitura de Cachorro Urubu que deixou Raul Seixas completamente boquiaberto, além de uma canção de Belchior. Há, ainda, as participações de gente de peso: Túlio Mourão, Chiquinho do Acordeon, Liminha, Grupo Karma, Antonio Quintela e Solange. Além destes, as gravações contaram com dois caras afiados: Áureo de Souza (bateria/percussão) e Chico Julien (baixo). Enfim, dá para se considerar um tesouro perdido da música brasileira, produzido e mixado pelo competente Sergio de Carvalho.

Quem fala a respeito é o próprio pai da coisa, Rick Ferreira.

Mais que um hit moderado, Retalhos e Remendos foi a chave para que sua carreira como um todo tomasse o rumo que tomou, não?
Foi um achado na minha vida! Tem muito sentimento. Emociona não só pela musicalidade, mas pela letra. Havia feito com o Paulo Martinelli, um amigo. Conheci o Raul por meio dessa música. No início de 1974, o Sergio de Carvalho mostrou Retalhos e Remendos ao Raul, que falou: “Esse é o som que estou procurando! Leva esse cara lá em casa. A partir de hoje, quero ele na minha vida!”.

Então, foi uma música que mudou não só a minha vida, como, acredito, a do Raul também, né? Quando o conheci também conheci o Paulo Coelho. E rolou uma afinidade bem forte com ele. Começamos a conviver e tal. Aí, teve aquele desentendimento entre os dois, por volta de 1975. Quando o Paulo viu que Retalhos e Remendos iria para a novela, colou em mim. Sei lá, talvez estivesse na esperança de que eu me tornasse um novo Raul [risos]. Pode ser que tenha sido isso o que passou por sua cabeça…

Eu sei que o Paulo Coelho passou a compor comigo. Pegou essa música e falou: “Pô, Rick, deixa eu dar uma mexida nessa letra. Está muito poética. A letra é ótima, mas vou deixá-la um pouco mais comercial”. Acabou entrando na parceria – o que achei bom, porque o Paulo estava estourado com Gita. Eu ser lançado com uma música em novela, por uma gravadora grande e uma parceria com o Paulo, porra, seria um grande feito. E foi o que aconteceu!

Em que momento surge Porta das Maravilhas?
O Sérgio de Carvalho mostrou minhas gravações ao Raul Seixas, que me chamou para gravar com ele. Depois, o Guto Graça Mello tomou conhecimento dessas músicas, que já estavam há dois anos na mão do Sérgio. Um dia, o Guto, indo para uma reunião com o Roberto Menescal [diretor artístico da Philips] – eles estavam montando a trilha sonora da novela Cuca Legal –, ouviu essa música e falou que a queria para o tema da atriz Françoise Forton. Acabei sendo contratado pela Philips, lancei um compacto simples, com Retalhos e Remendos, que foi para a novela, e Meu Filho, Meu Filho. O Paulo Coelho fez estas músicas comigo.

Surgiu a possibilidade de um LP, mas aí o tempo foi passando, passando, e comecei a não ser mais interessante como artista para a companhia. Porém, quis fazer o disco de qualquer jeito! O Menescal fez de tudo para que eu não gravasse o disco. Tivemos até uns atritos bem chatos. Acabou que impus o que estava no contrato, e saiu o disco. Porta das Maravilhas surgiu dessa forma.

Fiz alguma divulgação em rádio e televisão, mais até pra cumprir o protocolo, porque o Menescal, como diretor artístico, não tinha mais interesse em qualquer tipo de investimento na minha carreira como artista. O disco não teve nenhuma repercussão forte na época. Hoje virou uma relíquia, peça colecionador.

O que você já tinha de música e o que compôs para o álbum?
Tinha algumas composições sem letra. Eu andava muito com o Junior Mendes, do grupo Karma. Compusemos duas músicas juntos, Solitário, que abre o disco, e Carro de Boi. Sempre tive vontade de gravar Cachorro Urubu, do Raul Seixas, mas num arranjo diferente. Também estava envolvido com o Belchior, que me falou: “Pô, Rick, tenho uma balada tão legal que você podia gravar em seu disco…”. Era Todo Sujo de Batom. Ouvi e vi que dava pra fazer um arranjo meio de balada, meio rock pop. Muitas das canções, eu já tinha, e fui atrás de parceiros.

Sua versão para Cachorro Urubu deixou o Raul Seixas de cabelo de pé?
Sempre adorei Cachorro Urubu. Pra mim, as duas melhores do Krig-Ha são Cachorro Urubu e Ouro de Tolo – mais que Metamorfose AmbulanteAl Capone. Em 1973, quando conheci a música, ainda não tocava pedal steel guitar, mas já tinha vontade de ter uma. Encomendei o instrumento logo que me encontrei o Raul. Ele disse: “Já sei até em que música a gente vai usar: S.O.S.”. Isso foi no primeiro dia em que o conheci, na casa dele.

Engraçado porque, na primeira vez que escutei Cachorro Urubu – acredite se quiser –, me veio à cabeça o arranjo que está no meu disco. Eu tinha usado pedal steel em S.O.S., mas algo simples. Quando o Raul ouviu o arranjo de Cachorro Urubu, pirou! Falou: “Cara, esse é o arranjo que eu queria ter gravado. Exatamente assim! Parabéns!”. Ele poderia até ter regravado essa música, mas acabou que nunca rolou.

Quem é o Marcio Werneck, seu principal parceiro em Porta das Maravilhas?
Era um primo meu. Morreu em 2005. Foi uma figura incrível! Era um historiador fantástico, começou a estudar toda a história de Arraial do Cabo, da chegada das caravelas… Virou uma sumidade. Mas isso foi depois do disco. Na época do Porta das Maravilhas, trabalhava na agência de publicidade do meu pai, chamada Denison. Sempre foi um cara muito competente. De repente, deu uma pirada: largou tudo, deixou a barba e o cabelo crescer, foi morar no meio do mato e começou a escrever. Me mostrou umas letras, e achei interessante. Dei uma lapidada no Marcio e passamos a compor. Fizemos coisas bem legais!

O quanto a música Porta das Maravilhas representa sua ideia para o disco como um todo?
É um fato curioso: o Marcio Werneck namorava a filha do dono de uma grande loja no Rio. E essa menina, Eveline Barki, era pianista e tocava clássico. Ela compôs essa música. O Marcio me mostrou, e achei legal. Não tem refrão; só uma parte A. O trecho meio progressivo, sem melodia nem voz, foi o Liminha que armou. Deu esse caminho ali. Tem um puta solo de baixo que ele fez. A faixa ficou muito forte depois dessa lapidada.

Eu tinha trazido o Liminha para o Rio. Estava montando uma banda para a divulgação do meu compacto. Vinha preparando o LP, tanto que ele participou de duas faixas, Carro de Boi e a própria Porta das Maravilhas. Ele estava praticamente parado em São Paulo. Tinha acabado de sair dos Mutantes. Ficamos no apartamento vago de um amigo, e o botei para gravar.

A música se tornou tão forte que acabou levando o título do disco. Acho que foi o título ideal. Porta das Maravilhas representa tudo para mim! É como se fosse minha. O carinho que tenho por essa é o mesmo que tenho pelas músicas que eu compus.

Qual é a chance de haver um relançamento de Porta das Maravilhas?
Eu adoraria um relançamento, mas até hoje não houve qualquer interesse da Universal Music, que detém os direitos. Cheguei a conversar sobre isso com o Sergio de Carvalho, uma época. Não é por falta de vontade minha. É um disco histórico, atual – várias músicas são muito atuais. Seria algo bem legal.

Imagem: Reprodução

Enquanto a reedição não vem, aproveite o player abaixo para ouvir o álbum.