“Minha parte favorita é a de Nova York”, conta Philippe Seabra na entrevista que fizemos. “Quando me mudei pra lá, não quis saber de rock. Tranquei minha guitarra no armário.” O disparo refere-se aos anos 1990, após o tortuoso fim da Plebe Rude.
Recém-publicada pela Belas Letras, O Cara da Plebe não é a autobiografia bonitinha de um famoso do rock nacional. Eu ficaria desapontado se fosse, até porque são mais de 600 páginas. Seria fake e enfadonho, portanto, se não houvesse feridas cutucadas.
Há um quê tenso costurando as passagens, divertidas ou não. Senti um nó ou talvez recalque no jeito como o cara da Plebe escreveu. Mas isso faz parte da qualidade da obra, um desabafo honesto e nada gratuito.
Discordo na parte favorita. O período nos EUA, terra natal de Philippe, nos dá um respiro depois de um percurso de conflitos. Entretanto, preferi assuntos focados na Plebe. Tornaram o livro mais fascinante.
Me surpreendi ao descobrir que o concreto estava rachado logo na largada. Para Philippe, o ambiente na banda já havia azedado antes do disco de estreia.
“Eu tinha o romantismo de uma banda tipo Monkees. Eles moravam juntos, andavam juntos o tempo inteiro. E esse romantismo foi mandado para a casa do cacete logo nos primeiros ensaios.”
A razão central foram as drogas e a falta de sintonia de Philippe com elas. “Olha quantos problemas causaram na banda”, explica-me. “Essa obsessão por droga por parte da turma me cansou logo de cara. Por isso é um livro de rock and roll diferente: tem a mesma quantidade de sexo, drogas e rock and roll, só que as drogas eram dos outros.”
O clima desgostoso dentro da Plebe Rude sempre teve uma exceção, o baixista André X. O Cara da Plebe acena respeito e admiração por ele. “Foi quem me apresentou ao punk, me chamou para montar a Plebe. Então, tem uma parte bastante importante na minha vida.”
Após terminar de ler, você volta aos discos da banda com outros ouvidos. Nos dos anos 1980, os mais consagrados, não pude evitar o incômodo de saber que por trás daquelas músicas tão robustas há dessintonia. São álbuns afiadíssimos. Se bem que…
Sucesso e desgaste
A Plebe Rude estreou com sucesso. O Concreto Já Rachou saiu em 1986 e deixou hits que viraram clássicos nacionais. Duvido você não conhecer Até Quando Esperar, Proteção ou Minha Renda.
O fato de ter sido um mini-LP pegou mal. “Fiquei muito zangado, meio ofendido até, porque não fomos chamados para um disco inteiro”, protesta. Philippe andava tenso mesmo.
“Naquela altura do campeonato já estava exausto. Apavorado, porque quando vi o primeiro disco da Legião, foi uma decepção: o som amansado, a qualidade sonora, o violão em Geração Coca-Cola… Isso me preocupou. Também estava vendo o Capital amansando o som, os Paralamas fazendo o vídeo de Vital e Sua Moto com o Herbert de cartola. Eu ficava horrorizado: ‘Não vou conseguir me encaixar nisso’.”
Mas a Plebe se encaixou à sua maneira. O Concreto Já Rachou rendeu o primeiro disco de ouro das bandas de Brasília. E embora sem o estrondo comercial, o trabalho seguinte também fez bonito.
Nunca Fomos Tão Brasileiros (1987) tem um parentesco sonoro incrível com O Concreto Já Rachou. Minha impressão faz sentido, uma vez que a safra principal dos álbuns foi a mesma.
“Tente imaginar O Concreto Já Rachou com Censura, Nova Era Tecno, Bravo Mundo Novo… Nossa, que discaço seria! A Ida já aparece como uma música feita no Rio de Janeiro, quando eu ainda estava inspirado. Mas, realmente, os dois discos são juntos.”
O guitarrista/vocalista refere-se à capital fluminense, pois a Plebe se mudou para lá. Um movimento natural para uma banda que pretendia crescer na época. O eixo Rio-São Paulo era necessário, ainda mais quando se estava na crista da onda.
E o quarteto vivia seu melhor momento. Um contraste ímpar com o incômodo do cara da Plebe. “Eu era muito infeliz no auge da banda, sabia? Engraçado, porque normalmente tem aquele clichê do rock and roll, de drogas. Mas eu era infeliz por causa da droga dos outros. No livro, uso o plural não à toa. A equipe técnica foi de Brasília para o Rio. Então, tudo ficava turvo no meio da fumaça. Me deixava doido, cara! Me fez muito mal.”
As farpas mostravam suas pontas. “Eu começava a ter uma falta de diálogo com o Jander [Bilaphra]. Isso causou muitos problemas.”
Anos 90
Em 1988 saiu o terceiro disco do grupo, aquém em relação aos anteriores. Plebe Rude até tem seus momentos interessantes, mas peca nas esquisitices. Uma delas é o baião roqueiro Valor, uma forçada de barra terrível.
O rock começava a perder espaço no mainstream naquele período. Muitas bandas tiveram que se desdobrar. Porém, quando a casa está bagunçada, o resultado tende a ser inferior.
“Eu estava esgotado. Mais uma vez, o excesso, aquela fumaça toda… Meu mojo havia acabado”, justifica-se Philippe. “É que eu não conseguia pensar direito. Era um abuso psicológico aquela fumaça toda. Não tinha como a banda continuar naquela formação.”
Questionei-o sobre essa “dissonância” do disco. “A começar pelo título”, mandou na lata. “O único consenso era a falta de consenso. Nem o título a gente conseguiu decidir. Achei um erro a coisa da brasilidade, mas talvez inconscientemente estivéssemos tentando ter uma faísca tipo Paralamas.”
Não. Definitivamente, minha parte favorita do livro não é a mesma do Philippe. Os detalhes da Plebe são mais suculentos. Principalmente aqueles que nos lembram da imperfeição deles. O tom iconoclasta combina com uma autobiografia. Ponto positivo em O Cara da Plebe.
O ápice dos conflitos acontece nos anos 1990. A nova década desafiou o Brasil com o Plano Collor e seus desdobramentos. Uma realidade que ajudou a angustiar os dias de Philippe Seabra. Eram a vida no Rio de Janeiro, as tensões, a dissolução da banda… Mesmo assim, ainda saiu um último disco.
Mais Raiva do Que Medo (1993) foi a pá de cal da Plebe Rude. Depois de ler o que li, só me restou perguntar se esse era o disco certo. “Era o que tínhamos, e há umas músicas extremamente pessoais para aquele momento. Meio que bloqueei como era viver no Brasil da época. Não lembro direito. Eu e o André nunca havíamos perdido a fé na banda, mas seria um caminho difícil. O rock estava muito em baixa. Foi o que fizemos e vindo de bastante drama, porque o processo para chegar ao disco foi dramático.”
Como se aguenta tanta exaustão mental por tantos anos? “É que era uma paixão pelas músicas, pelo porte da banda.”
Mas a morte do pai transbordou a paciência de Philippe. Ele largou tudo e se mandou para a América em 1994.
Rock de Brasília
O Cara da Plebe ganha cores e um respiro quando entra no atual milênio. As mudanças na formação, principalmente a entrada de Clemente (Inocentes), mudam o jogo. As páginas trazem mais leveza e as críticas, trocam seu alvo.
Aliás, segundo ele, valeu a pena ter dado sua versão para as saídas de Gutje Woortmann e Jander Bilaphra, no início dos anos 2000. “Foi importante colocar isso para fora. Ninguém via meu lado.”
Além de retratar a Plebe Rude, o livro é um registro válido sobre o rock de Brasília. O ambiente da capital federal, a turma da qual também saíram Aborto Elétrico, Legião Urbana, Capital Inicial, a conexão de Philippe com Renato Russo e Herbert Vianna. Há inúmeras curiosidades, todas contextualizadas.
“Sentia que essas histórias estavam indo embora”, explica. “Ninguém estava lembrando mais. Até brinco no livro que se não falasse a respeito é como se não tivesse acontecido.”
Sobre o pedigree do rock brasiliense, ele diz: “Preenchemos uma lacuna que a cidade não nos fornecia. Criamos nossa estrutura, tudo propelido por uma curiosidade intelectual meio que impressa por nossos pais acadêmicos. É isso.”
Guitar Player
E não é que Philippe Seabra se referiu a duas matérias minhas para a revista Guitar Player? A primeira foi o trecho da entrevista que fiz com o Herbert Vianna em 2009, em que ele citou a Plebe Rude.
A segunda foi a entrevista que fiz com o próprio Philippe, em 2006, sobre o álbum R ao Contrário. Ele só não mencionou que na ocasião ficou chorando por uma correia como brinde da revista. Na óbvia falta de uma, arrumei-lhe uma correia minha… e ele jamais usou! Tá me devendo essa, hein!
Pra poucos
Uma boa autobiografia é aquela que nos faz escutar o autor contar passagens de sua vida. Isso ocorre em O Cara da Plebe. Philippe Seabra mostra levar jeito para escrever não só canções.
A mim, adiantou que sua bibliografia deve crescer no futuro. “Como é o primeiro livro, e o bichinho do livro me mordeu, não será o último.”
Seu calhamaço equilibra diversão e cutucadas. Até nos falarmos, na semana passada, ninguém da banda havia lido. Fiquei curioso quanto à repercussão do grau de sinceridade impresso ali. Como num acorde ardido, Philippe pontua: “A Plebe não é pra todo mundo, o livro não é pra todo mundo e eu não sou um cara pra todo mundo. Acho que tudo se completa aí.”
*Matéria publicada na minha coluna Playlist, no jornal A Tribuna Piracicabana, em 01/11/2024
*Imagem: Divulgação