Vai chegando esta época, e começamos a ouvir pessoas dizendo que o ano voou, que o tempo tem passado num piscar de olhos. O fato é que os segundos continuam durando o mesmo. A variante, na realidade, está em como nos colocamos na dinâmica do cotidiano.
Para alguém que passou dos 80 anos de idade e dos 60 de carreira, tempo poderia ser um assombroso tabu. Mas não é. Edu Lobo demonstra estar em dia com sua história e atento ao presente, por mais que nem ele evite o efeito do piscar de olhos.
“Não tenho o hábito de ficar pensando no tempo passado, embora ainda me assuste com a incrível rapidez de todas as horas”, comenta. “Coisa dita pelos mais velhos quando eu era jovem, este é um susto que acontece aos de mais idade. Percebo o engano quando vejo um de meus netos reclamando da mesma coisa.”
E quando se trata de tempo, as antigas glórias podem virar o perigoso canto da sereia. Contudo, o cantor e compositor carioca sabe preservar uma distância sadia. Revisita sua obra sem escorregar na repetição de si próprio.
Em 2023, lançou o álbum Oitenta, um merecido aceno à quilometragem vivida. Pelo repertório, uma quilometragem bem vivida. São releituras de composições suas, incluindo parcerias (várias com Chico Buarque), agora registradas com nomes de gerações diferentes.
“Um trabalho muito importante”, ressalta Edu, que não costuma ouvir o que lança, assim como a esmagadora maioria dos artistas. “Passei a ter contato com álbuns que não ouvia há quarenta, trinta anos. A relação ouvinte/trabalho se transforma totalmente, pois você consegue uma relação bem mais distante. Isso acaba sendo fundamental para a escolha do repertório.”
Um processo de imersão assim é como uma terapia em que o terapeuta é você mesmo. “Foram muitas surpresas que tive ao reencontrar canções que não ouvia há tantos anos e por poder descobrir coisas agradáveis. Enfim, por poder me reconciliar com alguns desses trabalhos.”
Poetinha
Entre as faixas de Oitenta está Só Me Fez Bem, de 1962. A canção não é somente uma conhecida da bossa nova/MPB. Representa a virada de jogo na biografia de Edu Lobo, um então estudante de Direito na PUC-RJ. Tornou-se seu grande parto na cena musical. Pudera, afinal é uma parceria com Vinicius de Moraes!
“Eu tinha apenas 19 anos quando me encontrei com o Vinicius pela primeira vez. Era uma reunião na casa de amigos. O violão passava de mão em mão, até que Vinicius me perguntou se eu tinha um samba sem letra. Depois da minha resposta afirmativa, ele ainda me pediu licença para escrever a letra ali mesmo, na hora. Você pode imaginar o que representa para um jovem rapaz se tornar, de repente, parceiro de um grande poeta, de quem eu conhecia não só a letras, mas uma grande parte de seus poemas?”
Dali a coisa engrenou. Edu passou a frequentar as chamadas “viniçadas”, encontros de amigos que, segundo ele, iam muito além de música e bebida.
“Essas reuniões, sempre capitaneadas pelo Vinicius, foram importantíssimas para toda a minha geração, porque o que parecia festa era, na verdade, um tempo de trabalho e aprendizado”, conta. “Estavam ali o Tom, o Lyra, o Baden, o Oscar Castro-Neves, o Luiz Eça. Os grandes mestres ensinando aos garotos, apesar das fartas doses de uísque e de um elenco respeitável de garotas que costumavam aparecer.”
O aprendizado surtiu efeito. Edu Lobo cresceu na carreira musical que se abria como um portal desses de filme de ficção. Trocou o Direito pela prolífica veia para belas composições. Tornou-se ainda parceiro de outros quilates, como Capinan, Aldir Blanc, Ruy Guerra e o já citado Chico Buarque. Cravou não só clássicos (‘Ponteio’, ‘Arrastão’, ‘Beatriz’…) como o próprio nome na música brasileira.
Fim do ponteio
Foram anos e anos de estrada empunhando o violão. Porém, há cerca de 15 anos, um acidente doméstico pôs fim à parceria constante com o instrumento. Edu Lobo precisou rearranjar sua relação com palco, mas o fez sem maiores traumas.
“Desde que escrevi as melodias das canções de O Grande Circo Místico, descobri que a composição feita ao piano poderia ser bem mais rica do que as que fiz ao violão”, conta, referindo-se ao espetáculo de 1983.
“Meu violão”, continua, “sempre foi de acompanhamento, nunca de solo. Portanto, as melodias eram criadas pela minha voz. Como todos sabem, a voz é bem mais limitada do que os dedos nas teclas do piano. Então, é lógico que a escrita ao piano passa a ser bem mais livre. Como eu sempre desejei.”
O músico carioca ainda lista três exemplos gerados a partir dessa liberdade criativa: “Beatriz, Choro Bandido e Valsa Brasileira não poderiam ter sido compostas usando violão e voz”.
Desafiador mesmo talvez seja o mundo externo ao seu. Em novembro de 2023, ele comentou numa entrevista que se fosse pensar na vida, perderia a vontade de fazer música. Aproveitando a deixa, questionei-lhe se hoje em dia tem conseguido se distrair.
“Quando me referi à vida, queria falar especificamente da política brasileira no péssimo momento em que se encontra, com promessas que sabemos que não serão cumpridas, fake news, mentiras e traições”, explica.
Dá para compreender uma colocação assim vinda de alguém com um histórico de posicionamento. E também dá para entender seu desânimo – ninguém em sã consciência aguenta mais a baixaria que impera no presente contexto.
Outro ponto é que a carreira de Edu Lobo emergiu numa época em que a música tinha relevância como meio de pensar. Algo que foi se perdendo ao longo das gerações. Hoje o tipo de música priorizada serve apenas como trilha sonora oca para ostentação, imbecilidades e fofoca.
Quis saber como ele enxerga a relação público-música-artista atual. “Não sei exatamente como responder a essa pergunta, só acho que a relação público-artista de agora é bem menos intensa do que no passado.”
Esse “menos intensa” abre um mar de possibilidades de significados, hein? De qualquer forma, contente, não parece estar com a realidade digital que se impôs a todas as carreiras.
“Pelo pouco que sei, acho que os direitos dos músicos que participam de gravações não costumam ser pagos, o que é um grande absurdo. Tenho ouvido também que o destino dos CDs físicos está em vias de acabar. Então, não posso dizer que as novas notícias me alegram de alguma forma.”
Orgulho enorme
Cada período exige esforços específicos. Com ou sem violão no palco, à moda antiga ou surfando por entre plataformas de streaming, Edu Lobo simplesmente segue.
Oitenta soa robusto o bastante para maturar com a calma que uma obra pede. A imersão do cantor e compositor por sua discografia mostra que a bossa se renova, tal qual ele mesmo. Datado, portanto, fica quem quer ou não tem mais saco pra coisa.
Para alguém que passou dos 80 anos de idade e dos 60 de carreira, tempo virou tempero. Ao menos para esse lobo do cancioneiro popular brasileiro, que logo mais sobe ao palco do Sesc Piracicaba.
Se haverá um próximo disco ou se Oitenta encerra a lista dos tantos lançamentos de Edu Lobo, ninguém sabe. Nem ele.
“Só sei que me sinto bem com a vida que eu tenho. Tenho um enorme prazer em lidar com música, não só como compositor, mas também como ouvinte. Me sinto em paz com tudo isso e um enorme orgulho por ter sempre feito as escolhas que desejei. Sempre.”
*Matéria publicada na minha coluna Playlist, no jornal A Tribuna Piracicabana, em 18/10/2024
*Foto: Nana Moraes