Se é que dá pra falar assim, o Mullet Monster Mafia tornou-se um patrimônio de Piracicaba. Trio invocado que faz um som fora da caixinha do mainstream e toca regularmente no exterior. Uma solidez que já se estende por 16 anos. Então, sim, para mim esses caras são patrimônio nosso.
Neri Orleone (bateria), Ed Lobo Lopes (guitarra) e Jé Novaes (baixo) iniciaram há pouco uma turnê por cidades paulistas. A agenda inclui uma parada por aqui e com um pessoal nada fraco. Dia 17 agora tem show deles no Casarão Music Studio, junto com o Supersuckers, lendário grupo americano de punk country.
O público terá uma ótima oportunidade. Se você ainda não dimensionou a coisa, Ed dá uma ideia: “É meio atípico mesmo ver uma banda do tamanho do Supersuckers tocando em Piracicaba. O evento será histórico para a cena de rock da cidade”.
O guitarrista não esconde o orgulho embalado por uma humildade saudável. “O Mullet como banda de suporte do Supersuckers também é um privilégio, ainda mais em lugares menores como o Casarão. Já tocamos em festivais na Europa, ao lado de grandes bandas, como Rancid, Bad Religion, The Animals. Mas tocar em casa num show desse, com nossos amigos, certamente é mais especial.”
No sábado (18), ambos os grupos seguem rumo a São Paulo, onde tocam no Jai Club. Além de Mullet Monster Mafia e Supersuckers, a noitada terá os holandeses do Peter Pan Speedrock. Depois, a turnê do trio piracicabano vai a Americana, dia 26 de outubro, para o desfecho dos compromissos.
Supersuckers o quê?
Antes de mais nada, vale o adendo sobre quem são esses caras. Formado nos Estados Unidos em 1988, o Supersuckers trilhou um caminho ímpar pelo underground. Do rock, claro. Aliás, seu som tem muito punch e elementos peculiares o suficiente para serem apontados como precursores do punk country.
A banda mudou bastante, mas manteve à frente o baixista e vocalista Eddie Spaghetti. La Mano Cornuda, The Sacrilicious Sounds of the Supersuckers, Motherfuckers Be Trippin’ e Holdin’ the Bag são álbuns que definem o som deles.
Além de Spaghetti, o trio que vem ao Brasil tem “Metal” Marty Chandler (guitarra) e Christopher “Chango” von Streiche (bateria). Quer mais uma razão para assisti-los de perto? Bem, o saudoso Lemmy Kilmister (Motörhead) era um ilustre fã do Supersuckers.
Cartilha MMM
Lançado no final de 2023, The Storm é o álbum mais recente do Mullet Monster Mafia. A sonoridade parece mais afiada, algo natural quando se acumula experiência e se incorpora um novo ingrediente à receita. O ingrediente chama-se Jé Novaes, o atual baixista. O trio ficou mais agressivo sem perder a cervical da surf music, sua principal bandeira.
“No show do dia 17 de outubro, devemos focar no nosso material, pois vamos gravar um disco ao vivo”, revela em primeira mão Neri Orleone. “Então, faremos uma retrospectiva de nossas músicas, logicamente mantendo o material mais atual em evidência.”
O baterista ainda revelou que a discografia de estúdio do trio deve crescer em 2025. Projeto sem previsão, mas já em andamento. “Estamos trabalhando em algumas ideias e riffs.”
Por algum tempo, eu via as viagens do Mullet Monster Mafia ao exterior como feitos. Só que minha percepção mudou. Deixei de lado a inhaca da síndrome de vira-lata. Não se trata de feito, e sim de um trabalho regular e organizado, além da qualidade.
Essa qualidade engloba os discos que produziram e a forma como se gerenciam. Ou seja, os dois pilares fundamentais da sobrevivência de qualquer banda. “Nossa logística é bem planejada mesmo”, confirma Ed. “Combinamos tudo bem antecipadamente. Conversamos bastante – às vezes, preferimos conversar a ensaiar.”
Com essa cartilha, os caras souberam equilibrar a carreira e os demais afazeres pessoais. Hoje são figuras mais que respeitadas no circuito estrangeiro, principalmente da Europa. Seu diário de bordo (se é que existe) computa dezenas de apresentações do lado de lá do Atlântico.
Remexendo as boas memórias da estrada, Ed Lopes cita passagens pelos festivais Sjock (Bélgica) e Surfer Joe Summer (Itália), “que é o maior festival de surf music do mundo, em que tocamos duas vezes”. Completa: “E o Mighty Sounds [República Tcheca], em que tocamos no ano passado no palco principal, com o Rancid.”
Para dar conta de compromissos tão diversos, a cartilha do trio reserva uma fatia do ano, todos os anos. Isso, segundo o guitarrista, ajuda a não complicar a rotina de cada um. Até porque “os outros dois integrantes são pais, então, temos que planejar bem.”
E não é só isso. Neri mora fora do país, o que exige ainda mais precisão. “Já deixamos passar várias oportunidades incríveis por falta de disponibilidade”, conta meio se lamentando. “Mas é o que é, até porque vivo na Alemanha e os caras em Piracicaba. Então, é algo que precisa ser muito bem coordenado para funcionar e continuar a render frutos.”
O Mullet Monster Mafia burilou uma discografia com trabalhos arejados. Não há registro feito na burocracia da obrigação. O que imperou foram circunstâncias apontando esta ou aquela direção.
Se The Storm celebra a atual formação, há álbuns munidos de outras peculiaridades. Clash of the Irresistible (2013) é um destes. “Até então, tínhamos lançado dois álbuns com trompete. Os riffs eram criados pensando no trompete”, analisa Ed. “Quando o Jc Moloncio saiu da banda, ficamos meio sem rumo até a entrada do baixista Netão Lombada. Decidimos seguir em trio e partir para uma surf music extrema.”
Orleone pinça Surf’n’Goat, compacto em vinil 7” de 2016. “Mudamos a estrutura das músicas e acabamos incorporando de forma definitiva diversas influencias do punk, metal e psychobilly”, explica. “Podemos considerar um ponto fundamental na nossa trajetória e na maneira como a turma começou a olhar para a gente.”
Os discos que uma banda lança são fotografias de sua história. Registros do amadurecimento através do tempo. “Após 2016 compreendemos que nossa principal característica era não fazer o usual, e sim arriscar, trazer elementos e referências de nossas influencias. Não sei dizer se é um amadurecimento, mas certamente é algo que nos deixa mais felizes a cada álbum”, reforça Orleone, que ao lado de Ed consolida a quintessência criativa do Mullet Monster Mafia.
Sucesso
Eis o encanto que jamais perde seu termo! Num mundo refém de redes sociais, sucesso virou mais que um ideal. Tornou-se ansiedade, quase uma obrigação, e, portanto, o passe que encurta o caminho de muitos para problemas como o burnout.
Por outro lado, tudo anda diluído, ampliando as perspectivas. Hoje, ser bem-sucedido com música carrega significados para além de fama e fortuna. Nesse aspecto, o Mullet Monster Mafia é uma banda que venceu, por tudo que você leu até aqui.
O termômetro de Ed Lopes para o tema considera a longevidade e a quantidade de amigos: “Levar isso por 16 anos, sempre fazendo shows, gravando músicas, e ainda olhando para o futuro, planejando o que se pode fazer, pô, pra mim é um sucesso”.
Pelo que disse o Neri, esse é o pensamento da própria banda. “Sucesso é ser feliz, se sentir realizado com o que faz e com você mesmo. Não tem nada a ver com tocar em estádios ou se tornar milionário. Poder sentar num bar e dar risada com os amigos, ter a família te apoiando, se divertir e dividir experiências com pessoas em diferentes partes do mundo é a verdadeira definição de sucesso.”
Para muitas bandas, o underground é um universo fantástico do qual não querem sair. No final das contas, investir no que gosta é o grande barato, e não o que alguém convencionou ser o trajeto correto da vida.
“O underground é uma opção”, diz o baterista. “Estar na estrada, ter uma banda, fazer música, tudo isso faz parte de um contexto. É ótimo tocar em grandes festivais, é uma experiência diferente, mas preferimos e sempre vamos preferir estar próximos dos amigos, porque é isso o que somos. O Mulletão não é apenas uma banda. São amigos fazendo farra com amigos.”
*Matéria publicada na minha coluna Playlist, no jornal A Tribuna Piracicabana, em 12/10/2024
*Imagem: Jean Novaes