MATÉRIAS

Michael Whelan: o quinto elemento na gênese do Sepultura

Certas bandas têm sua história fortemente vinculada a ilustradores para seus discos. Bons exemplos, não faltam: Iron Maiden e Derek Riggs, Thin Lizzy e Jim FitzPatrick, Kiss e Ken Kelly… Do Brasil, o melhor representante é o Sepultura.

A dobradinha com Michael Whelan acompanhou nada menos que a gênese mundial do quarteto. Todos os seus álbuns-chave levam a assinatura do artista norte-americano, ou seja, Beneath the Remains (1989), Arise (1991), Chaos A.D. (1993) e Roots (1996).

Whelan ganhou notoriedade como um mestre em criar cenas de fantasia e ficção científica. Iniciada na metade dos anos 1970, sua trajetória acumula exposições, prêmios e um amplo portfólio. Por conta do estilo bastante peculiar, seu trabalho deu vida a diversas capas de discos – a maioria de vertentes mais pesadonas do metal, como o Sepultura.

Beneath the Remains

Reprodução

O Sepultura queria que seu primeiro disco pela Roadrunner estampasse a ilustração que Max Cavalera viu na capa de um livro. Lovecraft’s Nightmare A era uma arte de Michael Whelan para a obra de H.P. Lovecraft.

Porém, Monte Conner, vice-presidente da gravadora norte-americana, parecia ter planos diferentes. Então, a ilustração acabou indo para outra banda, o Obituary. Saiu com o álbum Cause of Death.

“Muitas bandas quiseram usar Lovecraft’s Nightmare A para a capa de seus álbuns depois de vê-la nos livros de H.P. Lovecraft, mas o Obituary chegou lá primeiro. Não há muito mais a dizer”, comenta Whelan. “Não conhecia o Sepultura antes de a gravadora entrar em contato comigo, mas sou fã de heavy metal há muito tempo e gostei do que ouvi. Concordei em ter minha arte associada a eles.”

O artista enviou outras opções de seu portfólio, entre elas Nightmare in Red. A pintura já não era novidade, especialmente para o leitor de obras de horror. Foi feita para Tales from the Nightside, uma coleção de histórias de Charles L. Grant de 1981. Mesmo assim, ganhou a preferência do Sepultura.

“Lembro muito bem da gente saindo do estúdio Nas Nuvens, ainda durante as gravações, com um pacote do correio nas mãos”, conta Andreas Kisser. “Estávamos vendo várias ilustrações do Michael Whelan, entre elas essa do Beneath the Remains. Meio que escolhemos ali, na hora.”

“Nightmare in red” quer dizer algo como pesadelo de vermelho. A inspiração para ambos – pintura e título – resultou do período barra pesada vivido pelo artista no final de 1980.

“Já falei diversas vezes sobre as circunstâncias por trás dessa pintura”, alerta. “Normalmente fico ansioso por um projeto de terror assim, mas esse trabalho veio em um momento sombrio. Um mês antes, minha mãe havia morrido de câncer, John Lennon tinha sido baleado e dois amigos da família morreram em um acidente de carro. Quando comecei a pensar no que pintar, fechei os olhos e tudo o que pude ver foi essa forma vermelha flutuante contra um campo preto. Isso evoluiu para um crânio com formas simbólicas misturadas à composição.”

Mesmo tendo estampado as publicações de Grant, difícil conseguirmos imaginar Beneath the Remains com outra capa. Por tudo o que aconteceu de 1989 em diante na carreira do Sepultura.

“Pelo que me lembro, Max ficou particularmente atraído pelo mini Stonehenge na parte superior da caveira.” De fato, quando lemos My Bloody Roots, a autobiografia de Max Cavalera, percebemos que ele pirou na arte: “Monte Conner preferia a pintura da caveira à que foi usada em Cause of Death e a sugeriu pra mim. Era fantástica, e eu achava mesmo que tinha um design melhor. A imagem era bastante poderosa, exótica e maneira. O animal dentro da caveira é um morcego, um lobo ou algo assim. Michael sempre acrescenta esses detalhes, é um gênio”.

A mim, Andreas Kisser foi mais enérgico. “Um puta desrespeito absurdo com a banda!”, disparou, antes de descarregar sua bronca. “A capa do Beneath the Remains é icônica, mas, pô, ficamos putos pra caralho! Mudaram o logo da banda, falaram ‘não’ para a nossa primeira capa, saiu sem encarte, sem as letras, sem as coisas que amávamos.”

Arise

Reprodução

“Foi minha primeira ilustração criada para o Sepultura”, conta Michael Whelan. A banda até deu sugestões, mas “confesso não me lembrar de todos os detalhes”. O que ele se lembra é que teve aquilo que qualquer artista ama: liberdade.

Assim, aproveitou para abusar da inspiração, o que o levou longe do habitual em seus processos. Em vez de simplesmente colocar tintas e pincéis para trabalhar, buscou outras mídias.

“Encarei a tarefa como uma chance de experimentar e me divertir. Concluí uma pequena pilha de renderizações tonais de texturas e rostos distorcidos, que fotocopiei, recortei e remontei. Acabei usando uma impressão em tom sépia como base e finalizei com minhas tintas acrílicas habituais. Era um território estranho para mim, mas a arte reverberou entre os fãs por anos, então acho que deu tudo certo.”

Até finalizar a capa do jeito como conhecemos, Whelan arriscou diferentes possibilidades. Uma destas combinava duas ideias: “Uma composição feita por mim – e que ainda pretendo fazer a pintura pra valer, em cores – e um esboço que havia feito para a capa do livro The Year’s Best Horror Stories.” O resultado, entretanto, não empolgou o Sepultura. Veja abaixo.

Ideia alternativa para ARISE. © 1990 Michael Whelan. Todos os direitos reservados

“Arise” significa emergir. Um título perfeitamente alinhado aos caprichos do destino. Lançado em março de 1991, o quarto registro de estúdio do Sepultura coincidiu cirurgicamente com a ascensão do grupo ao primeiro time do metal mundial.

Chaos A.D.

O Sepultura estava com a bola toda em 1993, quando se reuniu em estúdio para gravar um novo álbum. Depois de aventar alguns nomes, convocaram o mesmo Andy Wallace que havia mixado Arise. Foi Wallace quem sugeriu o Rockfield Studios, na região sul do País de Gales.

Um digno celeiro, que viu nascerem álbuns do Black Sabbath, Queen, Judas Priest, Rush, entre outros. “Fomos viver o sonho”, empolga-se Andreas Kisser. “Eu estava me sentindo o Tony Iommi, o Ozzy [risos]. Estávamos vivendo aquilo, respirando aquilo.”

Michael Whelan ficou novamente com a missão de criar uma capa para a banda. Segundo Max Cavalera em sua autobiografia, ele teve acesso às faixas antes de todo mundo e sugeriu a ideia do corpo pendurado de cabeça para baixo.

“Achamos do caralho”, escreveu o guitarrista e vocalista. “A canção Clenched Fist tinha bastante distorção eletrônica e Manifest continha ruídos de máquinas, então, gostamos da inclusão de elementos eletrônicos na arte de capa.”

Assim como em Arise, o espírito criativo de Whelan pôde fluir à vontade. Então, o artista se aventurou por métodos que nunca havia utilizado. Despirocou e funcionou.

“Uma das melhores coisas de trabalhar com uma banda de metal é que tudo o que eu proponho, eles geralmente perguntam como dá pra tornar mais extremo”, avalia. “Sinto que a energia e a intensidade do Sepultura despertaram meus sentidos, e isso transpareceu na pintura.”

Reprodução

Chaos A.D. desperta nossa atenção antes mesmo de a primeira música ser ouvida. Graças à arte sinistra e obscura que estampa a capa, por sinal, intitulada Cacophony. “Outra ilustração feita especificamente para o grupo”, conta Whelan, que se baseou em uma imagem que lhe veio à mente tempos antes, durante uma experiência desagradável.

“Fui obrigado a comparecer a uma cerimônia de premiação. Antes do evento, eu me encontrava em uma grande sala cheia de pessoas barulhentas, tagarelando. Me senti preso e confinado. Cercado, como um personagem de uma pintura de Hieronymus Bosch, por pessoas gritando como gralhas. Lembro-me de sentar e fingir olhar para minhas mãos enquanto fechava os olhos e tentava distanciar minha mente do barulho… Aí que eu visualizei a imagem na pintura.”

O artista diz não se recordar de quanto tempo dedicou para criar a capa de Chaos A.D.. Mas garante que ficou bem empolgado, que se entregou às experimentações e ao que ia saindo disso. “Estranho que uma imagem de algo tão negativo possa me deixar com lembranças positivas e criativas, não?”

Talvez por ter sido algo tão prazeroso, Michael Whelan revisita os detalhes com minúcia. E é interessante saber como se deu o processo, o que ele usou, o que pintou, e depois observar a arte novamente, de perto. Um trabalho incrível e um salto substancial no estilo de capas que o Sepultura vinha adotando.

“Resumindo, usei a copiadora que tínhamos em nosso escritório para obter texturas de várias fontes: fotos, anúncios em revistas, recortes de jornais, etc. Em certo momento, estiquei um fio de telefone no aparelho e fiz cópias, assim como tomadas de telefone, camada de isolamento de carpete e outros objetos que encontrei pela frente. Vendo que as cópias estavam ‘boas demais’, eu as copiei várias vezes para degradar a qualidade a um ponto que achei interessante e viável. Então, usei facas e tesouras para cortar as imagens em padrões interessantes e fazer uma colagem com elas. Quando terminei os elementos essenciais das partes periféricas da imagem, pintei a figura e algumas das coisas no fundo.”

Whelan mandou fotografar a colagem pintada e depois imprimiu em tons de sépia. Na sequência, “cobri essa impressão com um selador e comecei a pintura de ‘acabamento’, usando a foto da minha colagem como se fosse uma pintura de fundo. A partir daí, foi tudo tinta acrílica.”

O norte para o conceito da capa veio daquela imagem que surgiu na cabeça de Whelan durante a muvuca nos bastidores da tal premiação. Porém, essa não foi a única inspiração. Tendo recebido as músicas para sentir a pegada, o artista também se envolveu com o teor das letras.

“Ouvia as mensagens sobre a luta humana contra os laços do confinamento cultural e o sufocamento da liberdade de expressão. As músicas deles eram um grito contra essas forças e a luta contra a injustiça. Mas as forças do mal às vezes parecem tão avassaladoras e as pessoas, tão impotentes… Só posso dizer que, à medida que a arte se desenvolvia, essas ideias vinham à tona e se somavam ao impulso que instigou o processo.”

Depois de uma reflexão assim, fica fácil entender a queda especial do artista por esse disco. “Chaos A.D. é o meu favorito deles. Refuse/Resist é uma ótima música.”

Falando sobre suas impressão acerca da capa de Whelan, Andreas Kisser traz algo de curioso (e intrigante): “O que foi do caralho é que ele pegou a capa do Beneath the Remains e meio que desenvolveu na do Arise, porque tem o Stonehenge ali, e também tem o Stonehenge no Chaos A.D.. Só não tem no Roots – talvez esteja escondido em algum lugar que ainda não vimos [risos].”

Roots

Reprodução

O ponto mais alto que o Sepultura chegou na carreira foi com Roots, em 1996. A banda finalmente conquistava o mundo por completo. Além de discos de ouro e uma performance memorável nas paradas de diversos países, esse trabalhou introduziu um novo capítulo na história do metal.

O projeto por inteiro exalta as raízes brasileiras. A música, claro, é o carro-chefe e vem repleta de sonoridades. Também há o reforço de participações especiais que vão de Mike Patton a Carlinhos Brown. Dessas, a que de fato brindou o espírito da coisa toda foi a dos xavantes, na faixa Itsári.

“Foi muito legal”, disse-me Max numa entrevista de 2016 para a Guitar Player. “O primeiro contato que fiz aconteceu com a Angela Pappiani, que trabalhava com os xavante e era amiga do cacique Cipassé. Alugamos avião, um gravador movido a bateria e passamos três dias com eles. Os caras nos pintando, conhecer sua cultura… É um país diferente dentro do Brasil.”

Andreas Kisser saiu de lá transformado, principalmente no que se refere à noção de tempo. “A galera ali vivendo um tempo completamente diferente do da cidade. Percebi que relógio é um instrumento supérfluo. Foi um ponto de partida para muito do que penso hoje, inclusive. Uma experiência forte, além da musical”, conta.

Para o povo Xavante também foi marcante. “Nós apresentamos dois tipos de música, e a primeira que eles gostaram foi a música de cura, que chamamos de Dasiwaiwere”, conta o cacique Cipassé Xavante, que coordenou a presença da banda na aldeia. “Fizeram o arranjo, adaptaram, e batizamos de Itsári, que significa ‘raiz’.”

A liderança curtiu a liga surgida da combinação de dois universos tão diferentes, o de sua cultura e o do heavy metal. “Eles cantam fortemente e nós, também. Então, eu diria que foi um casamento bem feito da voz do Sepultura com a voz da comunidade.” (clique aqui e leia a entrevista exclusiva que fiz com Cipassé Xavante sobre a parceria com o Sepultura).

O estilo roots virou sinônimo de Sepultura e a capa do disco, sua melhor síntese imagética. A arte é icônica, chama a atenção, embora Michael Whelan tenha um olhar menos empolgado de seu último trabalho para o quarteto.

Roots é um álbum legal, mas não é minha capa favorita. Olhando para trás, eu deveria ter feito com pintura a óleo. Confiei demais no digital e problemas técnicos quase atrapalharam o projeto quando meu computador de estúdio queimou. Eu tinha que dirigir uma hora todas as manhãs até o estúdio de um colega artista para usar seu equipamento, e isso no inverno durante uma tempestade de gelo. Acabou sendo um verdadeiro pé-no-saco preparar a coisa toda.”

As limitações também contaram, já que a concepção principal não surgiu de Whelan. “Max veio com uma ideia definida do que queria na capa. Se eu tivesse que fazer tudo de novo, não sei bem o que teria pintado – algo diferente, mas mantendo a mesma vibe, talvez.”

A tal ideia definida era usar o verso de uma cédula de mil cruzeiros, aproveitando a ilustração de um dos indígenas estampados. O guitarrista e vocalista fez uma cópia e enviou a Whelan. Além do indígena, elementos gráficos da cédula foram aproveitados. “Eu tinha essa nota da época em que ainda morava no Brasil”, contou-me na matéria de 2016. “Pensei que seria legal usar o índio da nota. Ficou perfeito.”

Andreas Kisser segue uma opinião parecida. Ele curtiu a ideia, principalmente por se encaixar ao espírito que movia o Sepultura de então. A banda buscava valorizar suas raízes em tudo o que desse. “Mostrou uma coisa pré-portugueses, pré-bandeira”, comenta. “E fugimos do verde-amarelo, o que foi fenomenal. Poderíamos ser óbvios de usar algo verde e amarelo, que ficaria meio pra gringo ver, mas fomos por outra direção.”

Em sua autobiografia, Max Cavalera reconhece que Whelan não teve muito o que trabalhar na concepção para a capa de Roots. A informação bate com o que o artista me contou: “Tive muita liberdade para fazer o que achasse necessário em Arise e Chaos A.D.. A única capa para a qual eles tinham uma imagem específica foi Roots. Não tive tanta liberdade nessa, então, não foi tão divertido fazer. Além disso, foi totalmente digital, o que não me agrada muito”.

O Sepultura pôde se dar a alguns luxos, inclusive o de decidir o que bem entendesse na maioria dos aspectos. Ou seja, tiveram carta branca para explorar o momento – e não desperdiçaram.

“No Chaos A.D., já estávamos num nível sensacional de independência artística, tanto é que fizemos o Roots, um disco completamente conceitual e muito corajoso, principalmente na época”, reflete Andreas Kisser.

A capa e o cuidado da banda com a identidade gráfica de Roots são reflexos dessa onda contínua de prestígio. “É um disco diferente, teria que ter uma capa diferente. Era inevitável isso”, completa o guitarrista.

Perene

O Sepultura rachou bem na crista da onda, ainda em 1996. Os problemas internos levaram ao rompimento entre Max Cavalera e os demais integrantes, Andreas Kisser, Paulo Xisto e Iggor Cavalera. Um rompimento traumático que sentenciou diversos fins: o da formação clássica, o de uma era, o de amizades…

Roots representa esse yin-yang da banda brasileira de metal mais influente pelo mundo. Encerrou a dobradinha com Michael Whelan, e isso também é bastante simbólico. Mas aqui por um viés positivo, o do ciclo completo em grande estilo para um legado sem prazo de validade.

“Acho que a arte fala pelo sucesso de nossa colaboração. É gratificante ver que mesmo depois de 30 anos os fãs ainda fiquem fascinados por essas artes”, finaliza Whelan.

Foto: Michael Whelan/Divulgação