Baratos Afins: pioneira dos independentes há 45 anos

Em maio de 1978, Luiz Calanca abriu as portas de sua loja de discos na Galeria do Rock pela primeira vez. Ele ainda era um farmacêutico fissurado por música que resolvera colocar seus vinis à venda. Não fazia a menor ideia da importância que teria, especialmente para a cena de viés underground do Brasil. Mas em alguns anos foi isso o que aconteceu.

A Baratos Afins, sua loja, virou um reduto para todos que visitam a famosa galeria instalada no centrão de São Paulo, quase vizinha ao Municipal. E isso inclui figuras ilustres, como Kurt Cobain e Chrissie Hynde. Até hoje.

Do rock à MPB, seu acervo abarca um volume diverso e impressionante. Virou uma referência não apenas pelos títulos à venda, mas porque pouco depois de surgir também se tornou gravadora/selo. Mais ainda, pelo apoio a um sem-número de artistas, jornalistas (eu me incluo aqui) e tantas outras pessoas envolvidas com a música.

É lógico que esse legado foi construído em coletivo. Há outros protagonistas por trás dessa história. Porém, o Calanca é a pedra fundamental. Resgato aqui uma entrevista de 2004 com ele como uma homenagem aos 45 anos da Baratos Afins, completados no dia de hoje.

Quando você abriu a Baratos Afins, qual era a intenção: ser apenas uma loja, ser um selo?
Era arrumar um dinheiro, cara. Porque minha filha estava nascendo, e eu precisava comprar enxoval de criança, berço, fralda, chupeta… Eu era farmacêutico e tinha meus discos, que eram bastante até, e precisei vender alguns. Mas não conseguia um bom preço e decidi abrir minha própria loja.

No começo, foi pura e simplesmente uma loja?
É! Na verdade, era pura e simplesmente uma loja e eu vendia uns discos para levantar algum dinheiro, porque estava realmente precisando. E era meio assim, com o maior dó, cara! Não estava muito a fim de vender, não. Eram discos da minha coleção. Coisas que adorava mesmo. Era dolorido vender cada disco. Mas aí, logo que abri, recebi vários elogios dos jornais da época. Falaram que minha loja era legal, coisa e tal. Fiquei meio gabola disso aí e resolvi assumir a loja de discos. Foi assim que começou.

Quando começou a história do selo Baratos Afins?
Foi o seguinte: antes mesmo de ter loja, já fazia baile com música mecânica e, de vez em quando, contratava umas bandas, também. Então, já tinha certa experiência em mexer com essas coisas. Eu tinha até certo conhecimento no meio artístico. Já tinha amizade com o Jorge Mautner, já tinha tido contato com o Arnaldo Baptista – até porque a gente pensava em reeditar um disco dele, que era um disco raro, mas não tinha dado certo.

Loki??
É, o Loki?. A gente queria reeditar, mas não tinha muita experiência. Fomos perguntar para ele mesmo, porque não sabíamos como proceder. Ele não entendeu direito o que era, o que pretendíamos e tal. Sei que, tempos depois, fiz o show dele, o Shining Alone, que era no Tuca. Cheguei a vender bilhetes, fazer cartaz, camisetas, a divulgação, e obviamente gravei o show, também. Inclusive, guardei essa fita por quase 30 anos. Agora em 2000 que a gente até teve uma discussão com a atual mulher do Arnaldo porque ela veio com pressão pra cima de mim e eu me invoquei e caí fora. Meio que rompi com ela, né. Não com ele, porque o Arnaldo, coitado… Mas, enfim, começou assim.

Aí, ele estava fazendo um disco independente, mas teve um acidente em que caiu do Hospital do Servidor, do terceiro andar – você deve saber disso. Ele ficou impossibilitado de terminá-lo, e como nós já estávamos mais ou menos contactados, acabei finalizando o álbum e lançando por aqui, pela Baratos Afins [a saber, o disco chama-se Singin’ Alone]. Naquela época, tinha censura federal, você tinha que ter um selo, tinha que mudar sua razão social. Não podia ser assim: qualquer cara ia lá e encomendava um disco.

Reprodução

A Baratos Afins acabou se tornando pioneira dos independentes.
É verdade, porque isso aí era 1982. Meio despretensioso. É claro que disco independente existe desde mil novecentos e guaraná com rolha. Mas normalmente as pessoas bancavam do próprio bolso seus trabalhos. A gente era uma produtora, uma loja que estava fazendo discos de terceiros, de outras pessoas. Então, eu diria que sou, não uma produtora independente, e sim o primeiro mecenas do independente. Talvez seja isso – posso estar falando bobagem. Não tínhamos a intenção de ser. Nós fomos. Fizemos Singin’ Alone em 1982 e depois me dei conta de que ninguém havia feito discos [independentes] de outras pessoas.

Acho legal essa coisa de mecenas, porque é a arte pela arte mesmo. Você pega o disco do Akira S e as Garotas Que Erraram. É uma puta obra de arte a capa.
Olha, esse disco tem uma peculiaridade. No governo do Sarney, logo que ele assumiu, e criou o Plano Cruzado, as pessoas andavam com um button no peito, dizendo assim “Eu sou fiscal do Sarney”. Naquela época começou a faltar tudo, porque todo mundo tinha dinheiro. Havia deflação, então, o dinheiro estava sobrando. Eu bati meu carro e ninguém queria consertar, porque ninguém queria trabalhar. Aí, fiquei com o carro batido encostado na garagem e comprei um novo, porque meu dinheiro também estava sobrando.

Meses depois, deu aquela quebrada e todos caíram na real, de que o Plano Cruzado era o plano furado. Ficamos sem papel para as capas. As indústrias gráficas não tinham papel para fazer capa de disco. Estávamos produzindo o Akira S e As Garotas Que Erraram e eu tinha papel para, no máximo, metade das capas. Então, como uma saída, fomos ao Brás procurar uma dessas casas que fazem embalagens para cobertores. Mandamos o modelo para o plástico da capa e eles criaram uma faca especial para aquele plástico.

Foi um negócio trabalhoso, porque depois pegamos esse plástico e levamos para uma gráfica aplicar o silk – daquele círculo, do cara mijando e da privada. No fim, ficou uma coisa criativa. O pessoal falou: “Olha, que legal! Que maravilha!”. Quer dizer, mudamos os conceitos de padrões de capa de disco, sem querer também. Acabou ficando pitoresca. Chegou até a ganhar prêmio ali. A Bizz dava prêmio.

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Ah, é?
Na época da Bizz, nós éramos a bola da vez. Todo mundo que trabalhava na revista era do nosso cast. Tinha o Zé Augusto Lemos, o Alex Antunes, o Walter Silva, o Thomas Pappon, o Minho K. Chegou um momento em que eu até me envergonhava daquilo. Um leitor de Curitiba mandou uma carta querendo saber quanto a Baratos Afins pagava para a Bizz dizer que Mercenárias era o melhor disco do ano. Eu até mandei outra carta, ofertando o disco de presente, porque ele alegava que em Curitiba loja nenhuma vendia esse disco. Mas de certa forma fiquei um pouco envergonhado, porque era isso mesmo, né? Tudo o que fazíamos era uma puta maravilha dentro da revista.

Aí, os próprios caras da Bizz começaram a querer me policiar. Quando fiz um disco do Kafka, banda de fora daquela panelinha que trabalhava na revista, quiseram detonar – o Kafta e o Vultos, que foi o estopim para a gente parar de fazer rock nos anos 1980. Um tal de Arthur G Couto Duarte recebeu os discos para escrever a resenha já com a inscrição “é pra detonar”. Mesmo que gostasse, teria que detonar. Então, começou a ficar um negócio meio forjado, falso.

Essa coisa me chateou bastante, mas, por outro lado, foi legal, porque comecei a fazer algo muito bacana – fora do circuito rock –, que era Vanguarda Paulista, Bocato, Itamar Assumpção, Vera Figueiredo… Fiz algumas coisas de jazz que, aliás, hoje, são mais cultuadas na Europa do que propriamente o som dos anos 1980 brasileiro, que era cópia do europeu.

***

Conversando um pouco mais sobre a variedade do catálogo da Baratos Afins, Luiz Calanca pontuou alguns pioneirismos. “Cheguei a fazer o disco do Coke Luxe, que era rockabilly. Deve ter sido o primeiro disco de rockabilly no Brasil. Acho que fiz o primeiro disco inteiramente de blues, que era o do Ave de Veludo, o Elétrico Blues.” Por fim, trouxe uma curiosidade interessante sobre um dos grandes nomes do punk nacional.

“Não fico a fim de fazer coisas muito iguais. Recebo centenas de bandas de hard rock, e todas imitam o Golpe de Estado. Então, não sou a fim de fazer uma coisa que já fiz. Que nem, fiz um disco de punk, do Ratos de Porão. Foi o Descanse em Paz. Aí, não iria fazer outra banda tão ruim quanto. Era difícil ter outra banda ruim à altura – ‘ruim’ é modo de dizer. O do Ratos de Porão foi o disco mais tosco que já fiz. Gravei e mixei tudo em 24 horas. Cheguei a trocar cordas de guitarras e a afinar instrumento porque a banda não tinha muito dessa preocupação. Não levaram nem guitarra no dia da gravação. Então, foi um negócio meio tosco, mas, olha, foi o disco que mais vendeu do nosso selo. Produzimos oito tiragens em vinil e estamos indo para a terceira tiragem em CD, sem contar os licenciamentos, que não foram poucos. Então, seria muito difícil fazer uma banda melhor que o Ratos, e fazer pior, não tenho interesse.”

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Aqui abaixo, uma foto minha com o Calanca em 2008, quando o encontrei no show do Nazareth em São Paulo.

Arquivo pessoal/Henrique Inglez de Souza

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