Tom Zé: tenho que morrer depois de cada disco

Em 2008, eu estava no Theatro Municipal de São Paulo para o lançamento de Mutantes Depois, primeira música inédita dos Mutantes em décadas. Não fui cobrir. Estava lá como convidado, porque havia escrito o release desse single. Foi uma noite e tanto, com um pocket show muito bem caprichado.

Antes de a banda se apresentar houve uma coletiva de imprensa. Participei de bicão, só para acompanhar. Assim que entrei na sala reservada ao bate-papo, me deparei com o Tom Zé. Lógico, não perdi a chance de puxar conversa.

Expliquei quem eu era e que tinha feito o release para a música. Simpático, ele trocou algumas palavras comigo. Virou uma entrevista incidental, que permaneceu guardada até agora.

O artista baiano é velho amigo e parceiro dos Mutantes, desde os tempos da Tropicália. Quando conversamos, o grupo já se organizava para um novo álbum de estúdio. O trabalho saiu em 2009, sob o nome de Haih or Amortecedor, e contou com uma maciça colaboração do Tom Zé.

Pedi que me comentasse a retomada criativa com Sergio Dias, figura central daqueles Mutantes, que também tinham o baterista Dinho Leme. “Quando fizemos as primeiras músicas, em 1968 e 1969, eu não tinha ideia do que é que ele queria, mas acabamos chegando a uma conclusão. Eu não tenho… Eu não tenho nenhuma… Eu não tenho…”

– Fugiu a palavra?

– É… Eu não tenho vaidade nem nada. A gente fazia uma letra e ‘não tá bom?’, então, fazíamos outra. Não tava boa, fazia outra. Um momento muito alegre foi a hora que ele me mostrou o primeiro arranjo [de Haih or Amortecedor]. Aí, eu falei: ‘Serginho, você está certo, tá bem-feito! Sei que você está com o mundo na cabeça, com o mundo sobre você, para cair em cima se não estiver bem calçado. Mas seu arranjo tem proteína, tem força, tem energia, tem som, tem felicidade, tem vida se abrindo a quem está nascendo ou a quem está com 40 anos’. Fiquei supercontente. Acho que ele vai fazer uma retomada de carreira com muito gás, muito vapor. Estou muito contente!

Também ouvi sua visão um tanto dadaísta sobre a dinâmica de um arranjo criado em conjunto. Perguntei como as ideias do Sergio Dias interferiram no que ele compôs para o então próximo disco dos Mutantes.

“O arranjo é uma metamorfose tal, que tem hora que nem você reconhece a música. Mas a música, mesmo não reconhecida, vai nascer de outra maneira, como se fosse o mesmo filho com outro pai batizando ou com outro útero produzindo. E estava tão bom que eu, depois de tomar o primeiro susto, ouvi a segunda vez, abri as pernas e caí”, disse-me, finalizando com uma gargalhada gostosa.

Ali, no Theatro Municipal, nem eu nem a maioria dos presentes fazia ideia do grau da qualidade criativa da banda versão anos 2000. O que tínhamos como referência era apenas Mutantes Depois. Fora isso, os shows de 2006, em Londres (que virou DVD), e o que reuniu uma multidão no Museu do Ipiranga, em 2007, para celebrar o aniversário da capital paulista.

Comentei, então, sobre o empenho de artistas de longa data em dar continuidade à própria obra. A colocação era genérica, contraponto à curtíssima memória cultural que impera no Brasil. Porém, Tom Zé usou do contexto Mutantes para opinar.

“Olha, você pode ter certeza que todos esses anos, com todas as agruras, com todas as dificuldades que essas pessoas passaram, foi também uma grande universidade, em que o impulso inicial da capacidade deles – tendo brilhado uma vez – é muito difícil se recuperar”, disse. “Muitas poucas pessoas têm coragem de se refazer das cinzas, porque todos nós viramos cinzas a cada dez anos. E as cinzas deles ainda tinham mais lenha por cima. Por isso, é admirável que o Serginho tenha saído com toda essa capacidade de produção. O que eu ouvi tem proteína, tem energia, tem força, tem sangue, para fazer qualquer criança ficar feliz de novo – e também as crianças de 40 anos, que estão precisando ouvir coisas mais fortes. Tem força! Eu estou até pouco inspirado para falar agora, mas tem força, tem energia.”

Improvisávamos um bate-papo/entrevista enquanto certa correria nos rodeava. Repórteres, fotógrafos e cinegrafistas se acomodavam, a assessoria da banda corria pra lá e pra cá, e os músicos, que não apareciam. Estiquei o contato com Tom Zé até o limite. Sabia que logo o chamariam.

– E falando de você, de seus trabalhos, seus últimos discos foram uma pesquisa.

– Sim, é! Minha maneira de viver… Pessoalmente, né? Minha maneira de viver é um suicídio anual. Porque eu descobri que quem sabe fazer música bonita pode todo ano receber a musa [inspiração], se inspirar e criar algo que vai vibrar o contemplativo das plateias durante três ou quatro anos. Eu nunca tive isso. Então, tenho que morrer depois de cada disco. E se alguma coisa que acontecer no mundo me interessar, vou aprender como é que pode virar música. Então, minha vida de fazedor de música é assim.

– Vida e morte Severina…

– É, uma vida e morte Severina.

– Você se sente chateado por causa disso?

– Não. Ao contrário: recebo um prêmio anual por isso. Cada disco meu que chega na Europa é uma comemoração, uma festa.

Eis que me dão um toque para liberar essa figura ímpar de nossa música. A coletiva iria começar. Agradeci os minutos divididos, e o desfecho do papo virou uma confusão desconstruída.

– Beleza, Tom Zé, obrigado! Uma honra conversa com você!

– Pô, querido, parabéns por você trabalhar com eles. E realmente espero que vocês todos sejam felizes.

– Não, eu sou só um…

– [interrompendo] Sim, mas faz parte! Parabéns, parabéns, parabéns!