Resgato aqui a matéria que saiu na edição 22 da revista Outracoisa, em 2007
Há pouco mais de um ano, quando a máquina Mutantes voltou a funcionar pra valer, o cosmo da música tem esperado pelo novo disco da banda. Disco de inéditas, claro. Mas e aí, será que agora vem? Parece que sim, pelo que apontou o guitarrista Sério Dias, figura emblemática dessa matéria.
“Finalmente poderemos entrar em estúdio e nos divertir, sem prazo e sem limites – o que é ótimo”. Essa alegria ilustra o contraste em relação ao curto prazo de três meses para preparar o trabalho anterior (Ao vivo – Barbican Theatre, Londres 2006). “Dessa vez”, explica, ”teremos tempo para sermos mais refinados, trazer músicas de outras pessoas, ter parcerias, experimentar mais”, completa.
Em se tratando de Mutantes e de toda a trajetória musical traçada com sua discografia, não dá nem para imaginar como estará o apanhado inédito dessa vez. Aliás, nem mesmo Sérgio Dias quis se comprometer. “Só vou saber a cara do filho quando ele nascer”, disse. “Não dá pra nortear o trabalho, senão a criação acaba cerceada. Você tem que determinar que fará música e ser completamente fiel àquilo em que acredita”.
Essa filosofia faz sentido, afinal, em tempos de extrema carência por parte da grande mídia no quesito qualidade, o artista tem mesmo que arriscar. O mais animador a respeito das novas composições dos Mutantes foi ouvir a seguinte frase do guitarrista: “O que vai sair disso, eu não tenho a menor ideia”.
Sabe-se, porém, que o repertório estará variado e assinado por diferentes nomes. O disco começou a ser gravado em outubro e terá a contribuição de todos os envolvidos com os Mutantes. Haverá trabalhos em parceria com Tom Zé e com “pessoas lá de fora, que nos honraram com tanta reverência”.
Não tem jeito mesmo. O quê de mistério ainda paira pelos ares da banda. Não escapa nem o botão da guitarra Regulus, famoso pela função nunca revelada. Depois de tantos anos, Sérgio Dias insiste em guardar tal segredo. Poxa! Nos dê ao menos uma dica… “Nem sonhando!”, enfatiza com gargalhadas um tanto sarcásticas. E tem mais: “Minha guitarra nova terá outras coisas misteriosas”.
Por conta da disposição jovial e irreverente, a volta dos Mutantes tem sido motivo de alegria e elogios – até mesmo para os saudosistas mais conservadores. Uma prova cabal de que meramente gratuita não foi, muito menos caça-níquel. Basta contabilizar o chão percorrido desde o elogiado Ao vivo – Barbican Theatre, Londres 2006. No Brasil, shows disputados e lotados por plateias coloridas a partir de gerações diferentes. No exterior, principalmente Estados Unidos e Inglaterra, a reverência aos Mutantes está com a bola toda. Turnês e muito trabalho para públicos igualmente eufóricos e volumosos. Inclua nisso sold-out no imponente Lincoln Center For The Performing Arts. (EUA) e primeira página no jornal The New York Times.
Como se não bastasse, os Mutantes foram indicados em duas categorias no Grammy Latino 2007 (Melhor Álbum de Rock Brasileiro e Melhor Projeto Gráfico de Álbum). Ou seja, nem de longe o grupo brasileiro passa pelo revival alheio. Talvez, uma forma adequada de se resumir seu atual momento seja dizer que não perdeu o fio da meada.
“Somos uma grande esperança para as pessoas verem que tudo é possível”, resume Sérgio Dias. “Quando você faz sua música, não tem que pensar em nada. Todo o resto é consequência”. E xô comparações inoportunas ou mal-educadas!
Música, MP3 e internet
O A e o Z, último disco com músicas novas dos Mutantes, chegou ao mercado em 1992. Naquela época, o CD esboçava conquistar o espaço do vinil, mas de lá pra cá tantas voltas deixaram tudo bem diferente. Agora, o CD tem cada vez menos preferência ante à febre da troca de áudio pela internet e pelos MP3 players. Sintoma de uma geração que praticamente perdeu aquele delicioso ritual de curtir a capa e o encarte de um disco. Entretanto, esse hiato de uma década e pouco parece não preocupar os Mutantes e seus quarenta anos de estrada. Ao que nos sugere, eles já não andam meio desligados como antes.
“De jeito nenhum”, pontua Sérgio Dias. “Fazemos música e é isso o que sempre fizemos. Minha profissão é essa desde os treze anos de idade. Não temos o menor medo de nada. Aliás, uma grande coisa que o Papa João Paulo II disse foi ‘não tenham medo’. Isso é genial e eu respeito muito”. Aproveitando a deixa do guitarrista, o que dizer do atual, Bento XVI? “Não dá para comparar. Tem umas coisas boas que ele está fazendo. Por exemplo, essa questão de voltar alguns dos rituais mais originais da Igreja é muito interessante. Lembro que na missa de sétimo dia da minha mãe, imagine, tinha alguém tocando zabumba! Que raio de missa é essa? Então, para quem está acostumado ao catolicismo tradicional, nesse ponto, o Bento XVI está certo”.
O assunto religião e fé surgiu bem no memento em que o universo recém-bagunçado pela crise do CD, pela internet e pelo MP3 entraria em cena. Com fé ou não, a verdade se apresenta nua e crua, mostrando um período turvo ao mercado. “As companhias estão tendo que se reajustar”, avalia. “Isso é uma questão mais deles que nossa. A única coisa que vai mudar é o quanto você ganha como autor ou como artista. Isso dependerá de como as gravadoras se posicionarão e quais serão as leis que vão reger o sistema. É algo que está fora da nossa mão. Mas, com certeza, sou a favor de que comprem discos. Lógico!”
Para um músico que desde o final da década de 1960 tem experimentado todo tipo de tecnologia, há ponderações pertinentes. No mínimo, embasadas. Ser a favor da compra de discos não representa estar inflexível a outros meios. Arroz-com-feijão do momento, a troca virtual de áudio (e vídeo) oscila entre duas questões: a da corrupção e a da curtição. Assim enxerga o mutante: “A gente fazia cópia em fita cassete, lembra? Acho que tudo tem sido rápido demais. O que eu vejo no Brasil, e mais me incomoda mesmo, é que baixar a música de um artista sem direitos e sem consultá-lo, às vezes, acaba sendo um risco ao próprio público. Ou seja, quem deve dar o suporte monetário para que venham próximos discos, acaba ‘matando’ seu ídolo. Não tem como o artista fazer um segundo disco se não receber pelo primeiro”.
Será que Sérgio Dias tem seu MP3 player? De jeito nenhum. Se depender do guitarrista dos Mutantes, o formato está condenado a sumir – e logo. “O som do MP3 é uma porcaria. Me desculpa, mas não dá para ouvir. O mais engraçado é o MP3 estar sendo tão divulgado, já que tem uma baixa qualidade de áudio.” Embora muitos usuários do formato possam protestar e insistir que a praticidade fala mais alto, Sérgio Dias tem seus bons argumentos. “Não é isso que os artistas estão fazendo”, defende, referindo-se à qualidade final com que as músicas ficam. “Imagine se a primeira vez que você fosse ouvir The Dark Side of the Moon, do Pink Floyd, fosse em MP3. Que merda, né? A viagem acabaria na primeira música. Temos que lutar por um saber viver. Então, se você gosta de música, tem que no mínimo ouvi-la com a qualidade que o músico aprovou.”
Um grito de esperança
Apesar da volta bem-sucedida, intempéries chacoalharam os dias dos Mutantes. Semanas antes de gravar o novo disco, Zélia Duncan e Arnaldo Baptista anunciaram seus respectivos desligamentos. O público recebeu a notícia com alguma surpresa. Não esperava tal desfecho prematuro diante de perspectivas tão animadoras. Para que mexer em time que está ganhando, não é mesmo? Mas aconteceu, e aconteceu com plena consciência da banda, que até contava com o desfalque de Zélia Duncan. “Nunca foi questão ela parar sua carreira. Estávamos tendo problemas de datas e para ela estava muito difícil”, justifica Sérgio Dias.
Em nota oficial, a cantora teceu só elogios à experiência, que descreveu como incrível. “O improvável aconteceu ali, apesar de um monte de previsões duvidosas, eles acreditaram em mim e vice-versa, e juntos vivemos emoções e realizações inesquecíveis”.
Para o guitarrista, o encantamento recíproco reafirma a missão dos Mutantes. “Na vida, a gente nunca sabe o que vai acontecer. A Zélia foi extremamente importante, principalmente para acabar com o mito de que pessoas são insubstituíveis. Ninguém é insubstituível – nem eu, nem o Arnaldo, nem a Rita, nem ninguém. Mutantes não somos nós. Mutantes, na realidade, são vocês, força que nos fez criar nossa música.”
Quanto a Arnaldo Baptista, nem mesmo Sérgio Dias soube explicar com precisão sua decisão. “Acho que ele estava cansado demais. Essa última turnê foi muito forte, muito pesada”. O guitarrista confessou ter sido pego de surpresa, mas garantiu que a nau segue em frente. “Não posso parar porque talvez isso seja politicamente correto. A coisa não funciona assim. O Arnaldo tem 59 anos de idade e toma as decisões dele. Não dá para falar: ‘Olha, queremos que você faça diferente do que quer’. É meu irmão, eu o adoro, e as portas sempre estarão abertas para ele. Agora, não é por causa disso que vamos parar. Temos uma responsabilidade imensa com diversas pessoas e um público inteiro. Não só no Brasil como fora também. Então, não posso fazer nada a respeito, só ficar triste. Adoraria que ele estivesse junto e espero que resolva logo voltar ao nosso seio, o que seria maravilhoso”.
A porta está aberta não apenas para Arnaldo Baptista, mas para qualquer um que “tenha carteirinha de Mutantes”. Apesar disso, quanto a substitutos, não há um nome sequer (pelo menos, não havia enquanto esta matéria era escrita). Sérgio Dias prefere deixar que as águas sigam seu curso natural. Não descarta, mas também não confirma novos músicos. Única certeza: o remanescente baterista Dinho Leme. Postura reforçada por uma carga e tanto de auto-confiança: “O principal disso é que eu vejo o lado positivo – sempre. Podemos fazer o que quisermos. Podemos sobreviver a qualquer coisa e, SIM, quando queremos, somos indestrutíveis. Isso é algo muito bonito para o ser humano – para o brasileiro, principalmente, que tem sofrido tanto. Para mim, Mutantes é um grito de esperança”.
Em matéria de troca-troca, a banda está mais que escolada. Durante a etapa inicial da carreira houve consecutivas reformulações na formação. Inconstância que proporcionou diferentes tendências musicais e um desgaste comprometedor. O fim dos Mutantes, perto da década de 1980, foi inevitável, necessário. No caso das mudanças de 2007, podem elas representar alguma ameaça? Não para Sérgio Dias.
“Aquelas [trocas de integrantes] foram o resultado de uma mudança radical durante um momento em que nós éramos muito jovens. A maneira como a Rita e o Arnaldo saíram na época foi muito dolorida. Hoje temos tempo e podemos pensar como vamos fazer. Mutantes, agora, é uma banda internacionalmente respeitada.”
A atual retomada foi conseqüência dos ensaios que o guitarrista fez com os integrantes da primeira geração pós-Rita e Arnaldo. Na ocasião, reuniu Túlio Mourão (teclado), Rui Motta (bateria) e Antônio Pedro (baixo) para relembrar a química antiga. Um certo resgate, que se transformou no que Sérgio Dias se referiu como o “prenúncio do que estava por vir”. “Não tínhamos a menor noção da extensão que isso teria, assim como eu não tinha quando comecei ainda criança uma bandinha chamada Mutantes”. Então, tá! Deixemos que o futuro nos diga para onde tudo se encaminhará após as saídas de Zélia Duncan e Arnaldo Baptista. Por hora, que hoje seja o primeiro dia do resto dessa história. No mais, fica a gratidão sincera de um homem realizado: “É um grande prazer viver e obrigado a Deus pela minha alma tão linda”, despede-se Sérgio Dias.
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Tributo aos Mutantes
Uma empreitada reunindo nomes conhecidos e outros nem tanto reforçou a importância dos Mutantes fora do Brasil. Jardim Elétrico – A Tribute to Os Mutantes foi lançado este ano pelo selo italiano Madcap Collective. A ideia surgiu no ano passado, a partir de duas cabeças: Francesco Candura, da banda Stop The Wheel, e Frederico F., do selo Madcap Collective e da banda Father Murphy.
“Decidimos lançar um disco que pudesse homenagear essa incrível banda. Foi um trabalho de amor pelos Mutantes”, disse Frederico. No repertório, quinze faixas misturando a psicodelia, o rock e o tropicalismo típico dos Mutantes. A reprodução disso, acreditem, veio com uma fidelidade impressionante (Tá bom, vai. Houve uma azeitona na empada, a faixa Tecnicolor, rebuscada com música eletrônica. Não funcionou).
Estão lá Top Top (Stop The Wheel), Panis et Circenses (Jennifer Gentle), Ave Lúcifer (Father Murphy), Mysterious White Roses (White Flag), Trem Fantasma (Sean Lennon & Yuka Honda), Bat Macumba (Tater Totz), Senhor F. (Littlebrown), A Minha Menina (Residual Echoes), Arnaldo Said (The Wondermints), Mágica (Pillars And Tongues), Dois Mil e Um (Oswald), O Relógio (Gomma Workshop), Adeus, Maria Fulô (Franklin Delano & Gres Unidos do Berimbau), Ave Gengis Khan (The Earlies) e Tecnicolor (Fabio Recco & Bia Mendes). Gravadas especialmente para o tributo, exceto Bat Macumba e Arnaldo Said, já lançadas anteriormente.
Até que conseguir reunir os artistas não foi lá tão difícil. Todos fizeram questão de participar, segundo Frederico F., que contou com o empenho de Susanna Motta, Marco Damiani e Bill Bartell. Esse time conseguiu reunir todos os músicos, alguns até empolgados demais. Esse foi o caso de Marco Fasolo, vocalista do Jennifer Gentle. “Gravei ‘Panis et circenses’ tentando soar o mais fantasmagórico possível e sem mudar o arranjo original”, explicou. Dos nomes expressivos, Sean Lennon, White Flag e Jennifer Gentle são os convidados destacados. A ligação entre todos, claro, foi o respeito pelos Mutantes. Sérgio Dias e Arnaldo Baptista, inclusive, além de darem o aval, ajudaram a viabilizar o projeto.
Em alguns casos, o apoio dos Mutantes foi fundamental. Mysterious White Roses, gravada pelo White Flag, precisou passar por algumas etapas de adaptação até ficar pronta. “O Sérgio Dias teve que me ajudar no arranjo da canção. Aliás, ele nem se lembrava dessa música até eu enviá-la para ele”, revelou Pat Fear. Por sinal, Pat Fear nada mais é que o nome artístico de Bill Bartell, um dos responsáveis pela realização do tributo. Esse camarada foi um dos grandes entusiastas dos Mutantes no exterior. Ajudou a aumentar o fanatismo de seus amigos, entre eles Kurt Cobain, Sean Lennon e Beck. Gente fina mesmo.
Para Sérgio Dias, o resultado de Jardim Elétrico – A Tribute to Os Mutantes ficou fantástico. Orgulhoso, emendou: “O Sean Lennon gravou Trem Fantasma, e foi muito legal. Quer dizer, pessoas como ele ‘perderem’ seu tempo para fazer isso. É muito bonito. É glória nossa, brasileira. O cara é filho do John Lennon, né, meu? Mesmo sendo um selo pequeno, Sean Lennon foi lá e participou – e fez por amor. Ele não estava visando lucro nem nada disso. Apenas prestando uma homenagem. É uma maravilha você pensar que Mutantes é formador de opinião dos formadores de opinião do mundo”.
E fim de papo.