O que você faria se tivesse a oportunidade de encontrar deus, o seu deus? O fotógrafo Dimitri Lee teve essa chance em 1989. Foi um misto de encantamento e choque embalado pela missão de clicar a capa de A Panela do Diabo – registro que eternizou a parceria entre Raul Seixas e Marcelo Nova. Dimitri era devoto ferrenho de Raul desde 1974, quando ouviu Gita, ainda adolescente. “Acho que fui a mais shows do Raul do que ele mesmo, porque em vários, ele faltou [risos].” Tamanha admiração explica o baque no dia em que se deparou com o ídolo no estúdio Vice-Versa (São Paulo), bem diferente do que seu imaginário construiu. “Cheguei cheio de equipamentos e encontrei o Raul. Encontrei Deus! E Deus estava com o cérebro completamente destruído…”, recorda-se. “Falei: ‘Raul, eu faço a capa que você quiser. Me conta’. Ele começou a falar umas coisas que eu não sabia como fazer: umas peças de xadrez voando, com uns tridentes… Aí, o Marcelo Nova viu meu olhar de desespero, me deu um abraço e: ‘Dimitri, faça uma capa boa pra gente. É só isso que queremos’. Lógico que eu estava triste. O Raul estava ‘pastel’.” Além de dar vida à capa, o fotógrafo conseguiu acompanhar as gravações. Aquele trabalho tinha tanta importância para ele que até a tratativa com a gravadora foi atípica: “Se alguém der orçamento zero, eu pago. Então, não tenho orçamento”, propôs. Simples assim, job fechado. “Queria muito encontrar aquele cara que me formou quando eu tinha 12 anos. Queria muito fazer aquela foto. Muito, por tudo! Óbvio que a WEA [gravadora, hoje Warner Music] ficou feliz por não ter que pagar nada. Então, pedi como bônus fotografar as gravações.” Ao longo de maio de 1989, sua câmera pegou diversas passagens. A experiência rendeu até mais que isso. “Um dia me chamaram: ‘Precisamos de mais um cara para bater palmas’”, conta. “Não tenho talento, principalmente para ritmo, e me botaram junto com o baixista [Carlos Alberto Calazans] e o baterista [Franklin Paolillo]. Errei todas as palmas.” Apesar da falta de jeito, a mixagem final de Pastor João e a Igreja Invisível manteve Dimitri. “Essa foi minha participação.” Outro Raul Eis que chegou o grande momento, o da imagem para a capa. As sessões ocorreram no estúdio de Dimitri Lee, cravado no bairro da Bela Vista. Raul Seixas e Marcelo Nova apareceram por lá paramentados e prontos para dar vida à empolgação do fotógrafo. “Raul era extremamente fotogênico. A dificuldade era fotografá-lo de outro jeito. Ele não tem legenda, e a melhor foto é sem legenda. Então, fiz uma porrada de fotos deles, com câmeras que eu amo.” Para dar aquela descontraída, Dimitri resolveu sugerir um sarauzinho divertido. Teve, aliás, o privilégio de pedir ao próprio um dos mais conhecidos clichês da cultura pop nacional: toca Raul! Porém, a sessão acabou embalada mesmo por Elvis Presley. “Meu sonho era cantar Raul com o Raul, mas ele falou que não se lembrava das letras. E eu: ‘Sério? Você é o único brasileiro que não sabe cantar Raul!’. Ele sugeriu: ‘Vamos cantar Elvis?’. Fizemos a sessão inteira cantando Elvis, porque eu também sei. Dá pra cantar.” Foto do jeito que queria, acompanhar as gravações do disco e ainda dar uma pontinha em uma das músicas – o pacote perfeito. Apesar do choque por conta do Raul Seixas que encontrou, Dimitri Lee vivia o êxtase. Na hora de revelar o material até dispensou o suporte de seus assistentes. O momento era seu. “Fiz umas fotos lindas!” Os astros pareciam realmente alinhados, não fosse um detalhe. Detalhe, não. Um deslize, que mudou completamente o rumo das coisas. Sua ideia era usar uma técnica que deixaria as imagens craqueladas. Um procedimento arriscado, pois envolve a manipulação de diferentes temperaturas. E o risco do pior se materializou: “Eu caguei o filme! Estraguei uma porção de fotos. Fiquei muito triste”. Na empolgação, em vez de testar a técnica somente com alguns negativos, usou todos. “Por algum motivo misterioso, errei. Eu nunca errava. Ali eu errei.” Saída de emergência Sem imagens e precisando cumprir o compromisso com a gravadora, Dimitri correu por um plano B. Escolheu o interior do hoje extinto restaurante indiano Govinda, que ficava na zona sul de São Paulo. Agendou nova sessão. Silvia Panella, da coordenação gráfica da WEA, acompanhou os trabalhos com apreensão: “Eu estava muito tensa, muito! Primeiro porque sou fãzona de Raul Seixas e era meu primeiro contato com ele. Depois, havia toda uma expectativa daquilo dar certo”. Mal sabia das fortes emoções que a aguardavam. “Passei na casa dele com a equipe que iria conosco para o restaurante, e o Marcelo nos encontraria lá”, conta. “O Raul estava se tremendo todo. Me pediu para parar numa padaria, e pensei: ‘Bom, quem sabe ele toma um café agora e fica bem’. Ele estava, assim, todo meio esquisito… Paramos numa padaria e ele pediu uma pinga daquelas de copo americano, às 9h da manhã! Falei: agora, danou-se [risos]!” Quando as coisas indicavam que se complicariam, veio o alívio: “O Raul tomou a pinga e ficou ótimo. E aí fez tudo o que pedimos. Foi supertranquilo. Tudo muito rápido”. A foto que estampa A Panela do Diabo tornou-se icônica. E quem vê os dois ali nem desconfia do calor do momento que marcou a sessão. “Eu tinha acendido um fogão na lareira”, explica Dimitri. “O Marcelo saiu, porque estava muito perto do fogo. E dei uma vacilada: vi o Raul suando, vermelho. Perguntei se estava doendo, ele falou ‘tá’. Aí, eu: ‘Putz, desculpe! Pelo amor de Deus, Raul, saia daí. Estou afinando a luz. Vai demorar’.” O retrato da parceria tornou-se uma imagem icônica. O material passou por uma edição simples até sair como conhecemos. Bem, “simples” aos olhos atuais, porque em 1989 o desafio tinha outro peso. “Era tudo muito artesanal, diferente de hoje em dia, que você faz no computador e já vê o resultado na tela”, compara Silvia. “No fotolito, tirava a prova e daí entendia o que estava acontecendo, que efeito tinha dado.