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Quando o rock brasileiro perdeu o cabaço

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O debute do Camisa de Vênus é um álbum punk, em todos os sentidos. Tudo ali é punk: a pegada, a atitude nas faixas, as letras, a produção. A qualidade sonora também é punk, em sua tosquice. E o mais interessante é que essa tosquice punk virou sua força inquebrável naquele momento, mesmo eles não sendo punks. Lançado em 1983, Camisa de Vênus registra o início de uma banda pioneira no rock do Brasil. Uma potência fora do radar nacional que construiu sua carreira na base da autenticidade e do foda-se. “Acordei um dia com tanta dor de barriga de tanta porcaria que tinha ouvido e digerido durante anos, que disse: ‘Porra, tá na hora de devolver tudo isso!’, e ali estavam nossas primeiras canções”, disse-me Marcelo Nova, certa vez. Esse é um dos diversos depoimentos que resgatei de entrevistas que fiz anos atrás e agora, recentemente. Aqui estão a história e os personagens desse quarentão incômodo que ajudou a tornar o rock brasileiro mais interessante. Um contraponto válido em meio às batatas fritas da geração Coca-Cola que surgia. Ejaculação precoce A iniciativa de montar uma banda partiu de Marcelo Nova. Ele andava de saco cheio do marasmo de Salvador em 1980 e havia colocado na cabeça que mudaria isso. Já era uma voz conhecida na cidade. Apresentava o cultuado programa Rock Special, na rádio FM Aratu. Sabia de um colega que também curtia rock. Robério Santana trabalhava na TV Aratu. Então, não hesitou em procurá-lo para falar da banda. Nenhum deles sabia tocar nada, mas Robério disse que manjava guitarra. Foi o que bastou. Era papo-furado. No máximo, Robério conhecia o acorde de mi. “Você sabe tocar rock’n’roll! Esse é o acorde de rock”, observaria um tal Karl Franz Hummel, o cara que lhe vendera a guitarra não tanto tempo antes. Robério voltou a contatar Karl, agora para convidá-lo a se juntar ao projeto. “Ele se entusiasmou todo com a ideia de conhecer o Marcelo. Falou que era baixista e que tinha um baixo.” Os três se reuniram na casa de Marcelo Nova. Rolaram versões de Negue, de Adelino Moreira e Enzo de Almeida Passos (famosa na voz de Maria Bethânia), e Clampdown, do Clash, rebatizada como Trabalhe Para o Patrão. “No primeiro acorde, Marcelo e Karl descobriram que eu não sabia tocar porra nenhuma”, conta Robério. “Foi constrangedor e muito engraçado ao mesmo tempo. Karl sugeriu que eu tocasse o baixo, por ter só quatro cordas. Achei que a ideia era de gênio e aceitei. Daí, surgiu minha primeira experiência como rocker e baixista.” Entre 1980 e 1982, o projeto caminhou sem muita força, principalmente porque Karl passou um ano no exterior, estudando, e os demais preferiram esperá-lo. Somente quando voltou que a coisa engrenou. Agora com o baterista Gustavo Mullem, os ensaios migraram para o sítio de um tio de Robério. O repertório inicial surgiu, muitas vezes, aos olhos de amigos e conhecidos que iam para lá. E foi dessa interação que saiu a inspiração para o nome da banda. “As pessoas que iam nos assistir diziam: ‘Que coisa chata! Que coisa incômoda, que coisa desagradável!’. Aí, eu pensei e juntei ‘incômodo’ com ‘desagradável’, e… Camisa de Vênus!”, conta Marcelo. A estreia num palco aconteceu em maio de 1982, na Casa de Festejos, sob o sugestivo nome de Ejaculação Precoce. Para surpresa, o local encheu. Na ocasião, a banda tinha a seguinte formação: Marcelo Nova (vocal), Robério Santana (baixo), Karl Hummel (guitarra), Gustavo Mullem (bateria) e Eugênio Soares (guitarra). Gustavo era um baterista que detestava ser baterista. O trampo de monta-e-desmonta do instrumento era a pior parte. Então, quando Eugênio abandonou a barca, depois do show seguinte, passou para a guitarra solo. As baquetas ficaram sem dono. Nem todos topavam encarar a precariedade técnica do Camisa de Vênus. Mas Aldo Machado topou, e assim se completou a quintessência da banda. Aldo era amigo de Eugênio, que falou da vaga e o incentivou a assistir um ensaio. “Eles iam tocar numa casa chamada Dose Dupla”, lembra-se o baterista. “Não gostei muito dos caras tocando, mas a porrada sonora me encantou. Embora fosse uma coisa bem escrachada, tinha seriedade.” O primeiro show com Aldo aconteceu no dia 17 de julho, em Feira de Santana. A data veio na esteira do sucesso no Dose Dupla e da cena que, aos poucos, o grupo impulsionava na capital baiana. O fato de Marcelo Nova ser uma figura conhecida ajudou a projetá-los. Porém, a força carismática dos caras era decisiva. “Nós fizemos a cena rock em Salvador”, afirma Aldo. “Não existia ninguém, nada. As pessoas ficavam dentro de casa, ouvindo Led Zeppelin. Quando o Camisa apareceu, o pessoal que estava dentro de casa começou a ir para as garagens, formar bandas.” O séquito de fãs aumentou ainda mais depois que uma fita com Meu Primo Zé ganhou as rádios soteropolitanas. O material resultou das horas de estúdio que um diretor de Marcelo na Aratu concedeu a ele para a gravação da demo. Versão para My Perfect Cousin, do Undertones, Meu Primo Zé conquistou o topo das FMs que tocavam rock na capital baiana. O quinteto se tornou uma sensação local rapidamente. Em paralelo, havia um trabalho literalmente braçal de divulgação. “Não tinha Facebook. A gente ia para as ruas, pichar no meio da madrugada”, explica o baterista. “Você via os muros da cidade todos pichados de ‘Camisa de Vênus’.” Vieram, então, mais shows por Salvador e em cidades do interior baiano. O do dia 6 de setembro de 1982 ficou marcado. O quinteto ruiu o Teatro Vila Velha com uma noitada insana de público recorde. Ali também surgiu a marca registrada dessa conexão banda-público. “No meio de uma música qualquer, eu comecei a falar: ‘Tamo botando pra fudê! Tamo botando pra fudê!’. No final do show, veio meia dúzia gritando ‘bota pra fudê’. A meia dúzia se transformou em uma dúzia, em 20, 100… Em pouco tempo, o teatro inteiro urrava ‘bota pra fudê!’. Na apresentação seguinte, o grito veio antes de entrarmos no palco. A partir de então, nunca mais me livrei dessa merda!”,

01/03/2023 / 0 Comentários
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Camisa de Vênus: Correndo o Risco (1986)

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O ano de 1986 cravou o auge do Camisa de Vênus clássico. Se em julho saiu Viva, um dos melhores álbuns ao vivo do rock nacional, em novembro veio Correndo o Risco. Os trabalhos marcam a troca de gravadoras, da RGE para a gigante Warner Music, e o acesso a uma estrutura de ponta (estúdio, orçamento). Produzido por Pena Schmidt, Correndo o Risco esbanjou uma sonoridade robusta, cristalina e generosa. O polimento perfeito para um repertório perolado, do qual saíram Simca Chambord, Deus me Dê Grana, Só o Fim, a épica A Ferro e Fogo e a regravação de Ouro de Tolo, de Raul Seixas. Músicas como essas se tornaram hits da banda baiana, algumas até do rock brasileiro. O porte de uma gravadora como a Warner permitiu os cliques nada baratos de ninguém menos que Bob Wolfenson. Mesmo assim, o renomado fotógrafo era um luxo que fugia dos padrões da companhia para a produção de suas capas. Daí se percebe o tamanho do moral que havia em torno do Camisa de Vênus. O conceito para a capa veio de Marcelo Nova. A imagem foi feita em São Paulo e guarda uma curiosidade. “Aquela velha atravessando a rua, sou eu! Pouca gente sabe disso”, conta o vocalista. “A foto foi tirada na avenida Paulista. Estou atravessando fora da faixa de segurança, vem um Simca Chambord na minha direção, e tento pará-lo com uma bengala.” A sessão comandada por Wolfenson contou com um staff completo, incluindo produção de figurino, vestuário, maquiagem e cabeleireiro. Os demais integrantes do grupo baiano também participaram. Não dá para notar, mas eles estão dentro do carro. Coisa fina mesmo. Silvia Panella, coordenadora gráfica da Warner, acompanhava os trabalhos e conta que o clima era de diversão total. “Eu já era fã do Camisa de Vênus. Gostava bastante. A gravadora sempre topou deixar o artista fazer o que tivesse na cabeça. Então, estavam bem à vontade naquilo que queriam. Uma energia gostosa.” A foto escolhida para estampar Correndo o Risco ainda passaria pelas mãos de um designer. E aí está o porém para Marcelo Nova. “A exemplo do que já havia acontecendo com o Batalhões de Estranhos [disco do Camisa de Vênus de 1985), o cara que fez a arte da capa achou que ficaria muito bom pegar a bengala da velha e transformar num negócio parecendo, sei lá, com um cajado de He-Man. Horrível aquilo, horrível! Tirou a sutileza, a simplicidade da capa.” Ressalva à parte, a arte tornou-se emblemática no rock nacional, muito por conta do estrondoso sucesso do álbum. Banda: Camisa de VênusDisco: Correndo o RiscoProdução: Pena SchmidtDireção artística: LiminhaConcepção da capa: Marcelo NovaFotos: Bob WolfensonDireção de arte gráfica: CVSCoordenação gráfica: Silvia PanellaGravadora: Warner Music (WEA)Ano: 1986 Imagem: Reprodução

07/08/2022 / 2 Comentários
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