Raul Seixas partiu desta para uma melhor no dia 21 de agosto de 1989. São três décadas sem o roqueiro baiano. E se já ocorrem inúmeros tributos país afora normalmente, imagine agora. Sei de um show nesta semana que será bem mais que um tributo.
Rick Ferreira, guitarrista que gravou todos os discos de estúdio do Raul, a partir de Gita (1974), levará sua banda ao Blue Note Rio (Rio de Janeiro). A performance recebeu o esperado nome de 30 Anos Sem Raul e está marcada para este sábado (16), às 22h30.
O guitarrista era simplesmente o homem de confiança do ícone baiano. Alguém que colaborou substancialmente com a obra que conhecemos. Sem querer, ganhou até um bordão famoso, “Larga, Rick!”, eternizado na música Quando Acabar o Maluco Sou Eu.
Assistir ao show desse cara é prestigiar uma fatia valiosa do legado de Raul Seixas. É ver de perto um cara hábil e versátil em seu instrumento (por sinal, predicados postos a serviço de um sem-número de grandes nomes, além do Raul).
Provavelmente haverá diversas homenagens a Raul Seixas. O que a sua terá de especial, além de você mesmo?
Cara, vou manter a banda que tenho desde 2008, com meu filho, Pedro Terra (guitarra), Emerson Ribber (violão, voz), Miguel Archanjo (teclado), Marcio Chicralla (baixo) e Márcio Saraiva (bateria). Eu canto quatro ou cinco música, no máximo.
Farei um apanhado de toda a obra do Raul, do Krig-ha, Bandolo! ao Panela do Diabo. De diferente é o que sempre digo: não considero meu show um show de cover. Estou no palco, reproduzindo o que gravei nos discos. E conto algumas histórias de gravações e passagens que tive com o Raul em estúdio. Isso torna meu show autêntico. Qualquer outro do Raul considero cover.
O repertório que escolheu é aquele que sugeriria ao Raul, se ele estivesse vivo?
É muito complicado levantar um repertório do Raul. Sempre terá alguém insatisfeito, e é impossível fazer um show com todas as músicas dele. Há um ou outro disco que não irei tocar. Acho que nenhuma música do Metrô Linha 743, embora eu tenha uma parceria com ele nesse registro – Mas I Love You (Pra Ser Feliz).
Agora, com certeza, se o Raul estivesse aqui, hoje, e falasse “vamos preparar um puta show para 2019”, minha sugestão seria o repertório que farei no Blue Note, no próximo dia 16. São as músicas com as quais mais me identifico.
E, dessas, quais são as especialíssimas?
Tenho algumas preferências, por exemplo S.O.S., do Gita, que foi o primeiro dia de gravação que tive com o Raul. Considero essa uma pérola. Outras pérolas, que estão no Uah-Bap-Lu-Bap-Lah-Béin-Bum!, são meus hits: Quando Acabar o Maluco Sou Eu e Canceriano Sem Lar (Clínica Tobias Blues).
Há mais. É foda, só tem pérolas! Tem Cowboy Fora da Lei, que iremos tocar no Blue Note – até levarei o pedal steel especialmente para tocar essa música e Carpinteiro do Universo, que considero outra obra-prima do Raul, uma das mais bonitas que ele já fez!
Qual é a história de Quando Acabar o Maluco Sou Eu?
Essa letra é mais do Cláudio Roberto do que do Raul, que compôs mais a parte musical. Mas é claro que tem o dedo dele. É aquela coisa: todo mundo faz um monte de merda e de loucuras, mas o maluco sou eu!
Fiz o solo em um take, de primeira – o Raul estava no estúdio para trabalharmos a cobertura dessa música. Ele pirou! Ficou tão doido com o solo que quando foi colocar a voz não se conteve e mandou: “Vai lá! Larga, Rick!”. Aí virou o bordão para a história. Ficou sacramentado.
Canceriano Sem Lar foi feita meio a toque de caixa, né? O Raul compôs na sua frente. Você não ajudou a compor essa música?
Parece até piada, mas infelizmente não! A situação foi a seguinte: ficamos sabendo que Check-Up e Não Quero Mais Andar Na Contramão haviam ficado presas na Censura. O Raul não tinha muito o hábito de gravar faixas a mais. Preparava o número de canções que teria no disco. Só que em Uah-Bap-Lu-Bap-Lah-Béin-Bum! aconteceu esse imprevisto.
O disco já estava praticamente pronto. Então, depois do estúdio, fui à clínica em que o Raul estava internado [Clínica Tobias] para conversarmos. Eram umas 16h, a hora do lanchinho da tarde, e ele estava exatamente sentado na cama, tomando café. Falei que as músicas tinham ficado presas na Censura e que teríamos de resolver a situação. Aí, o Raul disse: “Nós poderíamos fazer, sei lá, um blues…”, e eu: “Legal, mas você tem um blues?”. Ele pegou o violão que mantinha no quarto e começou a fazer um riff e a cantar: “Estou sentado em minha cama, tomando o meu café pra fumar…”.
Perguntei: “Porra, que música é essa? Está maneira pra cacete!”. E ele: “Pintou agora essa ideia”. Eu, babacamente, em vez terminar a composição junto com ele, falei que estava cansadão e que iria para o hotel [risos]. Poderia ter entrado nessa parceria, mas burramente não fiz isso. Foi uma grande moscada da minha vida!
Caramba, realmente!
No dia seguinte, gravamos, e foi direto! Canceriano Sem Lar é uma faixa registrada ao vivo no estúdio. O que eu gravei depois foi o piano, mas a base são duas guitarras, o Antenor Gandra e eu, o Albino Infantozzi na bateria e o Pedro Ivo Lunardi, de baixo.
S.O.S. traz o primeiro solo de pedal steel registrado no Brasil, certo?
O primeiro a ter e a tocar com um pedal steel, no Brasil, fui eu – assim como banjo de 5 cordas. No dia que visitei a casa do Raul pela primeira vez, levado pelo Sérgio Carvalho, falei: “Sei que você gosta de country music, e está chegando para mim um pedal steel”. E o Raul: “Porra, genial! Já sei até em que música vamos usar. Será em S.O.S.”. Eu ainda não conhecia essa música.
Depois, ele apareceu na minha casa para elaborarmos os arranjos das faixas que eu iria gravar. Me mostrou O Trem das 7, para a qual criei, na hora, aquele riff de violão de 12 cordas da introdução, S.O.S. e Água Viva.
O Raul ficou amarradão no pedal steel. No dia em que nos conhecemos, me deu três discos: o de um cara chamado Freddie Hart, que ele adorava, um do Buck Owens e um do Chet Atkins em que só toca música dos Beatles.
A primeira faixa do lado A do Freddie Hart chama-se Easy Loving, e tem um pedal steel lindo! O Raul me mostrou esse álbum por causa disso, e quando acabou de tocar, me deu de presente.
Mas com certeza, no rock brasileiro, o primeiro pedal steel a ser gravado foi o meu. Em meu disco solo, Porta das Maravilhas [1977], usei em duas faixas. Uma delas foi minha regravação de Cachorro Urubu, que é do Raul. Aliás, quando ele ouviu minha versão, falou: “Cara, se eu te conhecesse na época em que gravamos o Krig-ha, Bandolo!, teria gravado Cachorro Urubu com esse arranjo seu”. Foi bem legal a reação dele.
Como era o Raul Seixas em estúdio?
O grande lance do Raul era o estúdio, porque ao vivo era aquela coisa. Ele chegava completamente bêbado, não fazia uns shows legais. O fato de eu ter parado de tocar com ele ao vivo também teve muita influência disso. Não só por ficar com um pouco de medo da repressão e da perseguição em cima dele, mas me incomodavam essas atitudes.
Agora, em estúdio era genial! Tinha altas ideias, confiava no time que gravava com ele. A coisa fluía naturalmente. Era bem gratificante, um prazer. Não é com todo artista que podemos colocar nossas ideias na mesa. Com a maioria, já vinha um cara com o arranjo, dizendo o que você tinha que fazer. E o Raul não tinha disso. Nós tocávamos o que íamos sentindo. A liberdade para gravar com o Raul era algo excepcional.
Você já deve ter ouvido muita lenda ou mentira sobre Raul Seixas. Qual é uma das maiores besteiras que já ouviu?
Acho que as maiores mentiras são contadas pelas próprias pessoas que hoje se intitulam ligadas ao Raul, dizendo que tocaram com ele. O Raul tinha um comportamento no palco que dificilmente alguém poderia dar prioridade a ele na questão de sair na estrada. Isso gerava diversos músicos sendo chamados em cima da hora para fazer um show.
Na verdade, o Raul nunca teve uma banda fixa. Teve nomes que tocaram mais com ele. O Tony Osanah, por exemplo, foi um. É um guitarrista fantástico que durante uma fase fez vários shows com o Raul.
Hoje todo mundo diz que tocou com ele. E falam: “Fulano tocou com o Raul…”, “Conhece beltrano? Tocou com o Raul…”. Mas tocou em qual disco? São pessoas que, de repente, fizeram um show na vida com ele e ficam aí, se intitulando como músicos do Raul.
Pra mim, essa é a maior mentira que há: os aproveitadores da situação de mito do Raul, de ser uma lenda, um gênio e uma pessoa idolatrada, para pegar carona nessa história.
*Entrevista publicada em 13/02/2019, no meu site Riffs
*Foto: Eduardo Porto