Renato Teixeira: por enquanto, a música brasileira é lamentável

O futuro de Renato Teixeira já esteve entre a Ford e o ator Renato Consorte. Isso foi lá nos anos 1960, em plena ditadura militar. O pai, preocupado, lhe arrumou um teste psicotécnico na montadora. O amigo, sobrinho do ator, prometeu mostrar suas músicas ao tio. Tudo ao mesmo tempo.

No final das contas, quis o destino que a música fosse o caminho de uma vida inteira. O Consorte fez a fita do jovem compositor chegar até Walter Silva, e então a tal mágica aconteceu (encare como quiser).

A estabilidade e a projeção, no entanto, vieram só no final dos anos 1970, com sua inoxidável Romaria. Frete, Amanheceu, Raízes e Tocando em Frente são outras de suas canções que adornariam a história da MPB. Muitas delas eu pude conferir de perto, no show de Renato Teixeira há poucos dias no Sesc Piracicaba. Antes de ele subir ao palco, batemos um papo rápido.

Você tem usado bastante um termo, o da música funcional, que achei genial. Pensando nesse contexto de música funcional, como vê o tipo de música que faz – de raiz, dita caipira – dentro do Brasil contemporâneo?
A música funcional, em outros tempos, teve outros nomes e outras funções. Já foi chamada de música descartável, música comercial… de vários nomes. Mas essa denominação funcional é porque ela está sempre trabalhando em função de algo. Então, a música sertaneja hoje, é incrível, cara, mas não você consegue entender uma palavra.

Não! E você acha que é sempre o mesmo artista, né?
Parece que é sempre o mesmo artista. Então, parece que é uma hipnose que se criou. E isso tudo em função de vender produtos, principalmente o agronegócio, que apoia muito dessas duplas supercomerciais – esquecendo que o agronegócio começou no cabo de uma inchada, no braço de uma viola.

Sem cultura nada existe, então, esse esquecimento é grave. Mas isso faz parte desse momento do planeta de convulsão. A internet realmente mexeu com a cabeça de todo mundo. Ainda não nos acertamos. Vamos ter que sofrer um pouco para podermos nos ajeitar, nos organizar, e as coisas começarem a entrar no eixo. Por enquanto, a música brasileira é lamentável.

Agora, uma coisa que acho legal é que, com certeza, a boa música continua sendo feita com muita qualidade. Só não está no ar. Porque ninguém quer entender palavras agora.

Exato.
É uma agonia.

E a temática é a mesma: balada, cerveja, né?
Sempre a mesma coisa.

Ainda mais se pegar uma música como a sua, que é muito rica em paisagens, né? Acho que ela tem uma riqueza…
[Interrompendo] É, eu acho que no meu caso, no caso do Almir [Sater] e de pessoas que fazem essa música com um compromisso, vamos dizer, mais acadêmico, a situação não está ruim, não, entendeu? Nunca toquei para tanta gente como agora. As pessoas todas conhecem minha música.

Em todo lugar que eu vou, todo mundo vem comentar algo. Parece que finalmente entenderam que existe esse universo também. Uma coisa não anula a outra, embora essa música de serviço prejudique muito o lado mais acadêmico. Porque é muito grande, é muito poderosa. Domina os espaços. Mas isso passa.

E, Renato, em relação à inteligência artificial, de alguma forma causa apreensão em você, do ponto de vista da carreira, de espaços?
Bom, a inteligência artificial vem acontecendo desde que inventaram a campainha. Em vez de bater palmas, tocava a campainha… Então, é muito antiga. O que acontece agora não é a evolução de algo que chegou nisso. É um recomeço.

A inteligência artificial agora é um recomeço. É outra história, uma outra conversa. Esqueça tudo que já foi feito. Esqueça a campainha, tudo – até o WhatsApp. Esqueça todas as modernidades que a evolução da internet causou. Porque agora começa outro momento na história da humanidade.

É um pouco assustador, porque estamos só na ponta do iceberg.
Tudo que começa causa um alvoroço. Causa um terremotozinho, mas depois se ajeita. Lógico que vamos aprender a lidar com isso. Uma coisa que as pessoas têm que entender é que a música feita pelo ser humano, nada superará. Mesmo na inteligência artificial, a informação que está lá dentro é o homem quem passou. Ela pega todas essas informações, mistura, mistura, mas na verdade é sempre algo do ser humano.

Por exemplo, qual é o melhor negócio da música? É o autoral, porque o autor é perene. A música será sempre dele. Então, a música será sempre da humanidade, seja lá da maneira que vier. Na hora que aparecer um cara com o talento do Bach ou do Tom Jobim para mexer com isso, aí será realmente fantástico!

É, passar a usar a inteligência artificial como recurso na música.
Exatamente. Isso irá acontecer uma hora, sem dúvida.

Quando você começou, o Brasil estava na ditadura militar. Eram outras dificuldades. Já quem está começando hoje, há tantas facilidades que acaba não saindo do lugar, né?
Não, ampliou muito o espaço. Hoje tem espaço para todo mundo. Na minha época, você tinha que batalhar para ser escolhido por uma gravadora. E aí ia fazer um disco, depois ia para as rádios… Era um funil. A coisa ia afunilando. A gravadora não podia gravar todo mundo. Agora, não. Agora você faz do celular, faz seu clipe, sua música. Isso é muito bom, porque a manifestação musical é algo positivo e benigno em qualquer sentido.

Não dá pra demonizar, lógico.
Mesmo quando vemos essas barbaridades musicais que estão acontecendo por aí, elas têm uma função. Uma moçada vai lá dançar, relaxar um pouco, sabe? Corresponde ao nível cultural do país, que é baixíssimo por causa do ensino que ainda não conseguiu se estabelecer de uma forma ideal (bom, isso um dia vai acontecer, mas por enquanto ainda não aconteceu). Então, até essas coisas com que ficamos meio revoltados, se pensar, têm uma função. Em minha opinião, não existe música feia. Existe música que você não gosta.

As famosas ‘música boa’ e ‘música ruim’.
Acho que é a música que você gosta e a música que você não gosta, porque o que pode ser ruim para você pode ser bom para o outro.

Claro. Tem gente que gosta da música funcional, né?
Tem, tem, principalmente os investidores.

Hoje, como é tudo visualização e os ídolos de amanhã enterram os de hoje, no futuro haverá um vazio na memória musical do Brasil.
Olha, acho que o certo hoje seria: não vamos nos preocupar com o futuro. Deixa o futuro se preocupar com a gente. Ele está agindo. Deixa ele agir, sabe? Vamos ver o que é que ele nos reserva.

Voltando no tempo, e se lá atrás o Renato Consorte não tivesse curtido sua fita, você teria entrado na Ford?
[rindo] Não teria, porque fui muito mal no psicotécnico. Mas a vida é assim mesmo. Depois que a história está contada, tudo ganha certa coerência. Tudo parece que se encaixa.

O Walter Silva estava tomando banho quando seu assistente botou minha fitinha no gravador, e ele gritou lá do chuveiro: “Quem é esse cara aí? Me mostra depois”. Sabe, as coisas acontecem de uma forma que parece que não sei… No fundo, é assim que a vida é – isso no meu caso, mas também no seu caso deve ter acontecido muito. No caso de todos nós, entendeu? Essas coincidências.

Minha vida mudou naquele dia que o Walter Silva estava tomando banho e ouviu minha musiquinha no gravador.

Qual era a música?
Time de Bola, um sambinha falando de um caminhão com os jogadores passando. Sabe aquele caminhão que traz o time que acabou de ganhar, com os caras “Ganhamos!”? Essa é uma paisagem do interior, né? Lembro que eu vi um caminhão desses passando e fiz uma música sobre esse assunto. Hoje quando ouço, quando vejo, quando me lembro, pra mim, é uma prova de que eu já estava ligado. De que havia para mim, sim, um futuro na música, embora naquele momento eu não tivesse consciência alguma. Mas você fazer uma música para um caminhão que está passando com um time de futebol em cima já é uma observação bastante sutil de música, né? É bem interessante.

Fiquei surpreso que Romaria foi, na verdade, um tiro que saiu pela culatra. Você tentou fazer uma música supercomplexa e, na verdade, ficou uma puta coisa poética, musical e fácil de digerir.
Mais uma coisa assim… É o imprevisível. Na nossa profissão, lutamos com o imprevisível. Por isso que penso assim, pô, meu pai foi um herói. Porque você ter um filho que está jogando esse jogo, onde tudo é imprevisível, podia não ser nada, entendeu? Podia nada dar certo, né? Mas deu.

Vejo meu filho também tentando a carreira e fico bastante apreensivo. Imagino como seria meu pai nessa expectativa de a coisa dar certo. Mas ele botou fé, me apoiou e acabou que tudo dá certo. Quando você acredita… Talvez ele tenha percebido algo, porque era uma pessoa extremamente esperta. Meu pai era um cara ligado. Ele escrevia muito bem. Então, acho que viu alguma coisa. Por isso botou fé.

*Foto: Eduardo Galeno

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