O disco que salvou o Kiss da crise de identidade
Creatures of the Night foi um renascimento necessário para o Kiss. Depois de três anos derrapando, a banda precisava se reafirmar artística e comercialmente. E não adiantava ser um disco qualquer. Àquela altura, precisava ser algo mais do que bom.
O ano de 1982 foi chave. Pouco após a tentativa tortuosa com as inéditas incluídas na coletânea Killers, veio o tsunami. O quarteto deu a volta por cima com um trabalho robusto, incisivo e preciso. Suas melhores qualidades? Músicas de alto quilate e um som incrível de bateria. Ainda incluo aí a capa: para mim, a mais bonita da discografia deles.
A história do 10º álbum de estúdio do Kiss guarda passagens memoráveis e outras nem tanto. Algo esperado para um rito de passagem como o tal. O certo é que eles souberam se superar. O resto ficou para o tempo, que nos mostrou se tratar de uma verdadeira obra-prima.
Em 2022, quando Creatures of the Night completou 40 anos, saiu uma suculenta edição deluxe. Um parquinho de diversões completas e o ticket perfeito para uma matéria como esta.
Foto: Divulgação
Tapa na cara
“Com Creatures of the Night, achávamos que tínhamos que voltar a ser o Kiss, mesmo que um Kiss mais pesado”, comentou Gene Simmons em uma entrevista que fiz para a revista Bass Player, em 2012. “Havíamos ficado mais pop, mais dance e outros tipos de música com Unmasked e Dynasty. Queríamos, portanto, provar a nós mesmos que éramos capazes de fazer um disco puro e mais pesado do Kiss.”
Desde 1979, com Dynasty, a popularidade da banda sofria abalos, principalmente nos Estados Unidos. Unmasked (1980) teve um desempenho aquém o suficiente para sequer haver turnê em seu país natal.
“Achei a capa horrível”, disparou Paul Stanley na entrevista que fizemos em 2015. “Há canções muito boas no álbum, mas achei que o som e a produção cortaram sua força. Aquelas músicas haviam sido feitas com guitarra pulsante, e acabaram soando bem levinhas, motivo pelo qual fiquei desapontado. Nesse disco, nos perdemos de nós mesmos. Nem tínhamos um baterista! Peter [Criss] fazia os shows, mas nunca estava no estúdio conosco.”
Por sinal, Unmasked foi o último registro oficial de Peter Criss no Kiss, mesmo sem ter gravado nem um assovio. Seu substituto, Eric Carr, trouxe energia nova e uma pegada mais pesada, inspirada em John Bonham (Led Zeppelin). Porém, a estreia fonográfica pouco valorizou isso. Refiro-me a Music from “The Elder” (1981), um sonoro tiro n’água.
“O problema com The Elder foi que estávamos perdidos e não sabíamos mais quem éramos”, resumiu-me Stanley, em 2015. “Queríamos impressionar as pessoas que não gostavam de nós, e criamos algo que não era verdadeiro em relação à banda. Não é de se surpreender que as pessoas a quem queríamos impressionar odiaram o disco, assim como a maioria dos que gostavam do Kiss, pois não soou genuíno.”
Apesar da ressalva, o guitarrista vê algo de positivo: “O que o álbum trouxe de bom foi um semancol. Foi como se levássemos um tapa na cara ou um balde de água fria, do tipo: ‘O que vocês estão fazendo? Por que abandonaram o que amavam? Por que fizeram isso?’ Não haveria Creatures of the Night sem The Elder. Creatures of the Night fomos nós nos dando conta, repentinamente: ‘Espere aí! É por isto daqui que amamos o que fazemos!’ Enfim, tudo resulta do que vem antes.”
Favorzinho do Ace
Os perrengues não acabaram em The Elder. Ace Frehley iniciou 1982 decidido a sair do Kiss. Parou de mostrar novas canções e sumiu de vista. “Não tinha mais interesse em continuar na banda”, explicou em sua autobiografia (No Regrets, de 2011).
Não faltou quem tentasse convencê-lo do contrário. “Ele queria deixar a banda e começar uma carreira solo, pois, segundo o que me disse, seu disco solo venderia 10 milhões de cópias. Tenho certeza que estava chapado”, disse-me Gene Simmons em 2012.
“Nós, então, lhe sugerimos que ficasse na banda, que não precisava sair. Ele disse: ‘Não, eu tenho que sair. Tenho que gravar um disco solo’. E eu falei: ‘Mas você pode fazer seu disco, ter uma carreira solo e, ainda assim, continuar na banda. Nós não queremos nada de sua carreira solo’. Mas Ace insistiu: ‘Não! Tenho que fazer isso do meu jeito’. ‘Ok, faça como quiser!’”
Frehley garante que foram várias as razões para querer sair. “É difícil apontar um problema específico”, comentou em sua autobiografia. “Cada coisa alimentava outra: as drogas, a bebida, a banda, meu casamento.” O guitarrista queria se distanciar. “Eles não aprovavam meu estilo de vida, e eu não concordava com o que estavam fazendo com a banda.”
E assim foi, só que com condições. Para sair, segundo Paul Stanley no livreto da edição deluxe de Creatures of the Night, Ace Frehley teria que aparecer nas capas dos lançamentos daquele ano e participar de alguns compromissos, inclusive do clipe de I Love It Loud. O guitarrista, por sua vez, minimizou, dizendo que fez um favor para ajudar na promoção. “Meu rosto está na capa porque vendo discos”, arrematou, também à edição deluxe.
Fantasmas no estúdio
As gravações esticaram-se de julho a setembro de 1982, em Los Angeles. Michael James Jackson dividiu a produção com Paul Stanley e Gene Simmons. Sem Ace Frehley, a saída foi apostar em algo já usual nos últimos discos da banda: convidados.
Uma variedade de guitarristas e baixistas “fantasmas” marcou presença. Fantasmas, porque não saíam nos créditos: Steve Farris, Adam Mitchell, Mike Porcaro, Jimmy Haslip, e até Robben Ford, que registrou o solo de I Still Love You e todas as guitarras em Rock and Roll Hell. Para alguém conhecido pela veia blues-jazzística, causa certo espanto ouvi-lo em um álbum como Creatures of the Night.
Em 2013, fiz uma entrevista com Ford e aproveitei para tirar isso a limpo. “O cara que produzia esse disco [Michael James Jackson] estava trabalhando comigo numas demos para um álbum meu que nunca saiu”, explicou. “Falou de mim para a banda, porque eles estavam procurando um novo guitarrista. Na verdade, fui chamado só para tocar. Não acredito que tenham me cogitado para a vaga [risos] – de qualquer jeito, eu não toparia.”
Se considerarmos as inéditas de Killers, a lista de fantasmas aumenta, com Mikel Japp e Bob Kulick (irmão de Bruce, que integraria o Kiss num futuro não distante dali). “Foi um processo longo e entediante até achar o cara certo com a pegada certa”, disse Jackson no livreto da edição deluxe.
Doug quem?
A busca por um substituto para Ace Frehley rendeu testes com variados nomes. O Kiss dividia-se entre gravações e audições. Nem todos que se candidataram avançaram. Um destes foi o então desconhecido Doug Aldrich, que mais tarde se consagraria tocando com Dio e Whitesnake.
Em 2018, aproveitei uma entrevista que faríamos para saber da experiência, especialmente com Gene Simmons. “Eu o conheci durante os testes que o Kiss fazia. Foi muito legal, embora não tenha conseguido a vaga. Tocamos juntos e também fiz algumas gravações de teste no estúdio. Uma experiência incrível para um cara novo – eu era bem jovem e inexperiente. A situação me fez pegar a guitarra para estudar e praticar muito mais a sério.”
Aldrich acabou descolando o telefone de Simmons. “Quando a banda foi para onde eu morava, já com Vinnie Vincent na guitarra, liguei para Gene em sua casa – ainda tinha seu número. Estava rolando uma puta festa do outro lado da linha, e pedi para que o chamassem. Gene pegou o telefone, e eu disse: ‘Aqui é o Doug Aldrich’. E ele: ‘Quem?’. Repeti ‘Doug Aldrich’, e Gene mandou: ‘Perca esse número de telefone!’” [risos].
O cara certo
No final, o fantasma que se deu bem foi Vincent Cusano, ou Vinnie Vincent. Adam Mitchell, um dos muitos que deram uma forcinha no disco, o apresentou à banda. Logo rolou uma química promissora.
Vincent acertou com maestria no tempero hard/heavy que o Kiss buscava. Sua guitarra virtuose, de som firme e incendiário, aparece nos solos de Keep Me Comin’, Danger e War Machine, e em todas as bases de Saint and Sinner, I Love It Loud e Killer. Mais que isso, é coautor de três canções, Killer, a balada dark I Still Love You e I Love It Loud, maior hit do repertório.
Só poderia ser Vinnie Vincent o dono da vaga.
“Não esperava que os fãs fossem me aceitar. O engraçado é que me aceitaram imediatamente. Foi um daqueles momentos mágicos”, disse Vincent ao News Record, em 1986. “Me sinto muito orgulhoso por ser parte de suas vidas [do Kiss]. É uma grande honra! Também sinto que dei algo em troca: minhas composições e meu talento.”
Um álbum foda
Creatures of the Night chegou às lojas em 28 de outubro de 1982. Mesmo com intensa movimentação nos bastidores, o repertório soou com unidade. Mostrou-se digno da força típica do quarteto, só que alinhado ao cenário dos anos 1980, orientado pelo heavy metal.
A faixa-título abre com uma rajada pesada e o refrão inconfundível. Depois, uma sequência sem piedade: o riff magnético de Saint and Sinner, o groove metálico de Keep Me Comin’ e a densidade de Rock And Roll Hell. Danger traz uma vibe eletrizante.
A segunda metade de canções é radiofônica e irretocável. O clássico I Love It Loud e sua bateria icônica, a balada bluesy-metal I Still Love You, a poderosa Killer, que antecede o chumbo derradeiro War Machine.
Toda essa saraivada veio empurrada por uma capa impactante – noturna, sombria e intimidadora –, desenvolvida sobre a foto de Bernard Vidal. Dizem ter sido inspirada na do livro I Can Read About Creatures of the Night, de 1979. Dennis Woloch, designer responsável pela arte, não confirma e garante que o negócio está nos olhos brilhantes dos integrantes.
“O que torna a capa tão eficaz é que ela está na sua cara. Os rostos deles estão bem grandes, com os olhos brilhando”, opinou à edição deluxe. “Talvez seja a minha preferida de todas as capas que já fiz para o Kiss” – e olha que Woloch fez várias.
Daria para discorrer acerca de diversas qualidades de Creatures of the Night, mas a que mais persiste é o som avassalador da bateria. Não somente pela abordagem de Eric Carr, mas a maneira como o instrumento foi gravado e mixado.
“O álbum inteiro tem aquele som do Bonham [John Bonham, Led Zeppelin]”, analisaria Carr ao Kiss Rocks em 1989. No ano seguinte, em outra entrevista, o baterista falaria sobre o som grande e potente: “Nunca achei que tenhamos conseguido atingir aquilo outra vez”.
Eric Carr permaneceu no Kiss até sua morte, prematura, em 1991. De todos os discos que gravou, ainda considero Creatures of the Night seu ponto mais alto. Aliás, ele também considerava. Em uma entrevista de 1989, respondeu: “Esse é o meu favorito. Acabei de ouvi-lo há cerca de uma semana, não o ouvia há anos. É um álbum foda! É muito bom, e me sinto muito orgulhoso por ele.”
Jeitinho brasileiro
A necessidade de recuperar a dignidade fez com que o Kiss produzisse um álbum irretocável (Ok, daria para ser Vinnie Vincent na capa, por justiça. Algo que o famoso bootleg brasileiro de 1983 fez – vide imagem acima). Creatures of the Night permanece um álbum vívido, impactante e interessante. Sua potência manteve-se nestas quatro décadas.
Se a vibe no estúdio era de força total, o mesmo não se repetiu depois do lançamento. A vendagem do disco foi mediana e a turnê, difícil. Os shows promoveram o álbum e também celebraram a primeira década do Kiss. Ficaram marcados pelo famoso tanque de guerra giratório acomodando a bateria no palco. Não faltavam boas razões para algo bem-sucedido.
As apresentações começaram em dezembro de 1982, tendo Vinnie Vincent efetivado e com maquiagem própria. Porém, o que poderia ser uma caminhada de glórias, na verdade, deixou a desejar em diversos aspectos.
“Honestamente, a turnê foi um desastre”, refletiu Paul Stanley na edição deluxe. “Foi um momento muito, muito duro para nós.” Até mesmo as datas pelos Estados Unidos, as primeiras em três anos, trouxeram desgostos como baixíssima venda de ingressos. “O grande problema era a noção preconcebida do público”, acredita Gene Simmons. “‘O Kiss está chegando à cidade, [mas] onde estão Ace e Peter? E quem são esses caras novos?’”
O que salvou a empreitada e o ego do Kiss foram justamente os shows no Brasil, em junho de 1983, encerrando a promoção na estrada. A banda vinha pela primeira vez ao país e havia grande expectativa por parte dos fãs daqui. Por sinal, Creatures of the Night teve um significativo impacto entre os brasileiros. Um contraste, também observado pelo depoimento de Simmons na edição deluxe: “No Brasil, não era apenas KISSmania, era, sim, uma KISSmania como nunca havíamos visto.”
Além do tremendo sucesso (incluindo plateias com cerca de 200 mil pessoas), as datas pelo Brasil tiveram um significado extra: foram as últimas com as maquiagens e os figurinos espalhafatosos.
Depois de apanhar por três anos, e ainda tropegando aqui e ali, o Kiss completava seu vital rito de passagem. Todo o processo de Creatures of the Night preparou um terreno fértil para o quarteto norte-americano. No final de 1983, com Lick It Up, os discos de ouro voltaram a ser rotina para a banda, que passou a investir no hard rock farofa. Mas aí já é papo para outra matéria.
Edição deluxe
Os 40 anos de Creatures of the Night foram reverenciados com uma reedição especial, que saiu em variados formatos. No Brasil, a Universal Music disponibilizou um digipak deluxe com dois CDs (foto acima). O pacote traz o CD original remasterizado e outro com 16 faixas: sobras de estúdio, versões demo, versões alternativas (a estendida de War Machine é sensacional), gravações raras e registros ao vivo nos EUA, os primeiros oficiais com Vinnie Vincent (para muitos, a realização de um desejo e o fim de uma longa espera).
O trabalho gráfico é de um capricho só, sem economia de fotos da época e com um livreto biográfico. O detalhe é que a biografa do álbum se desenrola através de depoimentos de integrantes, do produtor, do autor da capa, entre outros (alguns deles reproduzidos aqui).
Realmente, a edição deluxe de Creatures of the Night transforma-se em um parquinho de diversões completas. Uma merecida celebração a um álbum tão singular como esse.