Enquanto batíamos papo após uma entrevista, pedi um e-mail de contato. Marcelo Gross disse que não tinha e-mail nem celular. Falou de um jeito que soou como orgulho por uma bobagem meio… boboca. Isso foi em 2006, na primeira vez que uma pauta nos juntou.
Mas hoje as coisas mudaram bastante. O guitarrista gaúcho sabe que precisa ser mais que somente artista para sobreviver como tal. Além de e-mail e smartphone, ele estruturou-se com WhatsApp, redes sociais, YouTube, e por aí vai. Com o básico necessário para ter e manter a agenda movimentada.
Desde que se tornou um cinquentão, em 2023, Gross vem enfileirando projetos variados. Todos conectados pela revisita ao passado. Com a Cachorro Grande, estreou recentemente o documentário A Última Banda de Rock e está na estrada celebrando 25 anos de história.
Pela carreira solo, publicou um livro reunindo as letras que escreveu, Grosswords, e agora o primeiro álbum ao vivo, Grossroads. As experiências que acumulou até aqui são diversas e justificam tanta checada no retrovisor.
“Agora é o momento de botar tudo em perspectiva”, explica. “Estou gostando de ver o Marcelo que fui e de ser o Marcelo de agora. Tenho várias ideias, mas sem aquela ansiedade típica de quando se é mais novo. Estou mais tranquilo, devagar e apreciando o que rola, sabe?”
Grossroads contempla o amadurecimento. A escolha das faixas, a fibra da banda no palco, a interpretação, a qualidade da gravação. O que saiu do forno foi, de fato, o disco ao vivo de um cara que repassa uma longa vida profissional. Para quem pretendia lançar somente uma coletânea, o tiro foi certeiro.
E aqui também cabe um aceno a Antonio Meira, da produtora Lado Inverso (atual casa do guitarrista). Foi quem o convenceu a mudar a proposta para um registro ao vivo. “Ficou algo atual olhando para o passado, mas olhando para a frente, com uma roupagem nova, uma sonoridade mais apurada. Foi uma espécie de sonho realizado. Melhor do que eu pensava”, diz Gross.
Durante a entrevista, feita no último dia 19, comentei que toda banda ou artista de rock que se preze lança ao menos um disco ao vivo. Faz parte do ritual sagrado do rock. Ele concordou.
“Dentro da minha coleção de vinis os ao vivo são especiais e são especiais dentro da carreira das bandas de que mais gosto. Tem o Live at Leeds, do Who, o Get Yer Ya-Ya’s Out!, dos Rolling Stones, o Hollywood Bowl, dos Beatles, que escuto desde pequeno. O Made in Japan, do Deep Purple, em que você nota bastante que as músicas são bem diferentes em relação às versões de estúdio. Tocar mais livre, poder fazer improviso e tocar um pouquinho diferente são alguns dos grandes baratos de um disco ao vivo.”
Embora as músicas em Grossroads permaneçam fiéis às gravações originais, a liberdade do palco está lá. Sobre isso, Gross puxa as performances ao vivo do Cream como inspiração: “Eles alongavam as canções”. E então saca sua Purpurina como exemplo, “ficou com nove minutos e pouco”.
Revisita ao passado
O show do disco foi gravado no Teatro de Câmara Túlio Piva. O local é um dos mais tradicionais espaços de Porto Alegre, inaugurado em 1970. Depois de anos fechado para reforma, reabriu em março de 2024, justamente com a apresentação de Marcelo Gross para o projeto ao vivo.
Eduardo Barreto (baixo), Jimmy Pappon (teclado) e Lucas Leão (bateria) dividiram o palco com o guitarrista e vocalista e seu inseparável visual mod. Som nu e cru em cima de um palco sem muitos apetrechos, apesar dos detalhes especiais.
“Meu primo Alan Scherer, que toca na banda Gran Metáfora, cedeu gentilmente a bateria Ludwig igual à do John Bonham no filme The Song Remains The Same – aquela Ludwig de acrílico e bumbo de 26 polegadas. Então, no sentido de sonoridade, ficou bem interessante.”
Duas inéditas reforçam Grossroads. Linguagem dos Sinais carrega o DNA clássico do Gross, aquela energia de sua década preferida. “Tem um clima meio psicodélico, uma letra enigmática, e é bem anos 1960. Há um pouquinho de Kula Shaker – escuto bastante esse britpop mais moderno. Quando estava escrevendo a melodia, queria fazer uma daquelas músicas dos Stones de 1966 e 1967, meio lírica, com a cara do Brian Jones.”
A outra inédita é bem conhecida, principalmente para quem gosta de rock argentino. Marcelo Gross fez releitura para Cosas Imposibles, do Gustavo Cerati, figura-chave do Soda Stereo. Uma novidade que surpreende.
Em vez de pegar Beatles, John Lennon ou Rolling Stones, que seria algo manjado, escolheu um cara de uma banda lendária da América do Sul.
“Não há uma conexão tão próxima do rock brasileiro com o argentino. Tem uma galera no Sul que gosta bastante, conhece, mas há a barreira da língua espanhola. E também, na Argentina não sacam muito das bandas brasileiras. Então, já que a barreira é a língua, resolvi fazer uma versão em português”, explica.
“Cerati é meu argentino favorito. Com quem mais me identifico, por várias razões”, continua Gross. “Em 2024 fez dez anos de sua passagem. Ele era autor das canções do Soda Stereo e depois teve uma carreira solo bacana como guitarrista e cantor. Também me identifico nesse nível. Quis homenagear e fazer com que as pessoas que curtem meu trabalho o conheçam.”
A fase revisita ao passado não terminará com Grossroads. Ainda há mais por vir, afinal a carreira de Marcelo Gross começou antes da Cachorro Grande e ele está curtindo os resgates que vem preparando. Uma das boas novas que ouvi é que teremos algo relacionado ao Júpiter Maçã, de quem Gross foi baterista no final dos anos 1990.
“Estes dias estava assistindo a umas fitas VHS das antigas. Tenho muito orgulho do período que vivi com o Júpiter. Minha fase psicodélica. Foi de muito aprendizado.”
Até que vejamos o que virá dessa experiência, a rotina do guitarrista seguirá dividida entre os shows de divulgação de Grossroads e a turnê com a Cachorro Grande. Nesse meio-tempo até mesmo outras surpresas podem surgir pelo caminho. Por exemplo, a banda gaúcha abrir eventuais shows do Oasis no Brasil… de novo.
“Seria um sonho, né? Voltamos, estamos melhores do que nunca, fazendo uma turnê de 25 anos de carreira. Vai que aconteça. Vamos mandar nossas credenciais a eles [risos].”
Marcelo Gross valoriza alguns dos predicados dessas credenciais, como ter aberto para Primal Scream, Supergrass e Aerosmith, sem contar Rolling Stones e o próprio Oasis. “Não tem como não lembrar dos shows que abrimos para eles em 2009”, diverte-se, falando da experiência com os irmãos Gallagher. “Foi como um sonho. Abrimos o primeiro show, e ainda tinha mais. Um sonho que se repetia [risos].”
Pelo que notei, é certo que o tal sonho se repetirá caso o Oasis volte ao país. De um jeito ou de outro. “Se rolar será lindo e se não rolar, estarei lá na frente, curtindo como o fã que sempre fui desde que lançaram o primeiro disco.”
Última banda de rock?
O título do documentário sobre a Cachorro Grande é uma provocação. Pretenciosa até, A Última Banda de Rock. Porém, em retrospecto, sou obrigado a concordar (em partes). Eles não foram a última banda de rock, mas sem dúvida vêm da derradeira geração relevante do estilo no país.
Marcelo Gross batalha seu espaço ano após ano como se recomeçasse sempre do zero. O nome consolidado na década passada até ajuda a abrir portas. Porém, não garante conforto, o que exige mangas arregaçadas para desbravar oportunidades.
Perguntei se a cena do cover representa uma barreira. Muitos que tentam carreira autoral no Brasil provavelmente diriam que sim. Entretanto, obtive outra opinião. “Para quem faz rock autoral no Brasil e é um artista independente como eu, as barreiras são muitas. Não acho que essa do cover seja algo que valha a pena destacar, porque a galera está lá fazendo seu trabalho. São músicos tocando para gente que está adorando ver o que estão tocando. Não é uma barreira, não.”
A questão, segundo ele, aperta na dificuldade de emplacar canções novas na mídia, como acontecia antes da era dos streamings. Ou ainda certo fogo amigo oriundo da “resistência de um público acostumado a te ouvir num trabalho antigo que virou clássico. De perceber que você está fazendo coisas novas e que aquilo que mostramos hoje talvez seja o clássico de amanhã”.
“Ocorre muito de as pessoas quererem ver o que já foi feito, o que já está estabelecido, e não serem tão abertas às novidades. Mas isso é uma coisa que acontece até com os Stones ou o Deep Purple. O pessoal vai ao show do Deep Purple e nas músicas do disco novo fica ali, olhando. Mas quando toca Highway Star, todos vibram.”
Sugestão do chef
A melhor qualidade de um disco ao vivo é ser visceral – pelo menos, mais visceral que pós-produzido. E Grossroads soa visceral. Há uma química costurando banda e plateia num equilíbrio convincente. Tem Cachorro Grande, carreira solo, inéditas, homenagem. Sem dúvida, um dos grandes lançamentos de 2024.
“Sugiro ouvir do início ao fim, porque tive tanto carinho para definir a ordem das faixas, já pensando no vinil que sairá em março”, diz ele, liberando o spoiler de mais um projeto. “O lado A terminará com Dia Perfeito e o lado B começará com Quase Fui. É um álbum ao vivo em formato de vinil. Então, sugiro a galera pegar um tempinho, ir lavar uma loucinha e curtir o disco do início ao fim. Não é tão longo.”
Como um plus embutido na qualidade visceral, o álbum nos dá uma ideia da visão de Marcelo Gross acerca da própria história. Achei bastante alinhados os comentários que me fez na entrevista à forma como sintetizou a carreira em Grossroads. Parece tudo em paz e harmina. “Estou curtindo, aproveitando o momento. Olho para trás com carinho, sem rancor algum e muito orgulhoso do que fiz.”
*Fotos: Fabrício Simões