Mallu Magalhães: madura e polêmica

Quando entrevistei a Mallu Magalhães sua carreira oscilava entre o sucesso do então novo trabalho, Vem, e os reflexos de uma polêmica por conta do clipe da faixa Você Não Presta. Ela acabou sendo acusada de racismo.

Estamos falando de 2017, um momento importante para a artista. Ela saía de um hiato de seis anos sem álbum solo de inéditas e ia direto para o topo. O disco tornou-se rapidamente o ponto mais alto de sua obra, o que não é exagero algum.

Vem soa maduro, bem resolvido e cativante. Provavelmente beba de experiências como a maternidade, a mudança para Portugal, a Banda do Mar (projeto com o marido, Marcelo Camelo) e o avanço natural da própria jornada na música.

No total, cinco singles foram lançados, mas poderia ter sido mais. Entre as gravações está Culpa do Amor, composição de 2014 que Mallu ofereceu a Gal Costa. Recusada e depois engavetada, a canção ganhou vida (e minha preferência) com Vem.

Cá pra nós, aqui… Ela foi e é sempre bem mais simpática que o tal do Camelo (que também já entrevistei). Portanto, a entrevista só poderia ter saído do jeito que saiu: sensacional.

Vem deixa transparecer, de alguma maneira, um sentimento embutido de distância, por mais que mostre uma Mallu aberta ao mundo. A ótica da timidez costuma ser um princípio para as letras que escreve?

Não. Vejo o álbum precisamente como um disco distendido, sem distância e sem timidez. A princípio, a timidez não teria que fazer parte especialmente desse trabalho. Eu o vejo como algo muito entregue, autossuficiente, por assim dizer. Ele mesmo parece ser bem autônomo, bastante autoconfiante.

Qual o peso de sua ida a Portugal em relação à maneira como passou a priorizar a música brasileira em seus trabalhos?

Em qualquer mudança, não só a coisa da distância de nosso país, procuramos trazer o que é nossa identidade, o que somos e de onde viemos, para onde vamos. E talvez essa repaginada, essa grande mudança na vida, seja o que tenha chamado essas raízes brasileiras. Acho que a música por identidade acaba resultando numa brasilidade maior.

Tem algum estado de espírito que te traga mais inspiração para compor?

Não, há vários! Acho que a felicidade pode ser inspiradora, a tristeza pode ser inspiradora e às vezes até o tédio, curiosamente: você não tem nada para fazer, fica tocando violão, e uma hora acaba fazendo uma música. Todos os sentimentos podem servir de inspiração.

Talvez seja viagem minha, mas conectei esse tom de distância do disco a um quê de revisita nostálgica a lugares, pessoas e músicas que marcaram passagens de sua vida. Tem algo disso?

Talvez um pouco. Love You é uma canção que lembra bem aquela minha primeira fase, do folk, da música voz-e-violão. Porém, na verdade, para mim, esse disco é muito de olho no futuro. É quase que finalizando um ciclo, como se fosse a cereja do bolo de todo um desenvolvimento artístico e um desenvolvimento pessoal. Até na música, pela autoconfiança e pela plenitude, sinto que com esse álbum finalizei esse ciclo de procura – como se eu procurasse minha identidade musical e pessoal.

Então, acho que uma procura pela identidade sempre terá, sim, um olhar para o passado, mas acredito que Vem, mais do que os outros até, é bastante de olho no futuro, muito progressista. É bem moderno, do futuro, e menos do passado.

Sua versão de Culpa do Amor é como imaginava que Gal Costa pudesse ter gravado, quando você enviou essa canção a ela?

Acho que sim. Minha versão é um pouco mais roqueira. Imagino que a Gal gravasse, talvez, de uma maneira mais acústica. Não sei, porque ela surpreende bastante. Cada trabalho seu é inovador, e ela tem esse aspecto bem moderno em sua produção. Inova muito. Então, é meio difícil prever o que ela faria, mas talvez fosse por aí: um samba ou uma bossa eletrificada.

A forte influência da fatia anos 1960-1970 da música brasileira é algo que incorporou do Marcelo Camelo? Fale da influência dele em sua veia artística.

Eu sempre tive essas influências, mesmo antes de conhecê-lo. O Marcelo me influencia muito como acho que eu também acabo o influenciando. Dividimos bastante nossas impressões sobre tudo, porque estamos constantemente conversando, claro. Mas eu sempre tive isso em mim. Sempre gostei muito da música brasileira, de pesquisar e de tê-la como referência. É algo mais antigo do que novo.

Em dez anos de carreira, que tipo de ingenuidade musical acredita ter perdido?

Nenhuma! Espero não ter perdido minha ingenuidade, porque a ingenuidade tem uma esperança e tem uma pureza que são valiosas. Eu procuro, inclusive, preservar em mim os sonhos de criança. Acho que é isso o que nos faz heróis – mesmo que o heroísmo comece e termine em minha própria jornada, interior, está valendo! É fundamental, então procuro preservar minha ingenuidade e em nenhum momento perdê-la.

Você teve problema com o clipe de Você Não Presta, faixa do novo álbum. Tê-lo feito daquele jeito foi uma ingenuidade?

Eu fiquei de me posicionar porque sou sensível às coisas que acontecem, não só em relação ao meu trabalho, mas àquilo que acontece no mundo. Porém, nesse caso, reiterei minha intenção e ficou bem claro para o público e para as pessoas que se sentiram ofendidas. Como acompanhei bem de perto as críticas, até elas disseram que sabiam quem eu era e que nunca faria isso intencionalmente. E a crítica residia justamente aí: o que a gente faz sem intenção, o que é subtexto, onde está o racismo quando não vemos.

Aprendi bastante com essa situação e não acho que tenha sido ingenuidade. Entretanto, acho que minhas intenções foram boas. A discussão gerada foi em cima de uma intenção positiva, então não me sinto culpada. Sei que minha escolha foi digna e honesta. E a discussão resultante desse acontecimento, saudável. Criou-se um campo de diálogo, e acredito que todos saímos mais sensíveis e mais atentos a essa questão. Aprendemos como sermos sociais como seres humanos.

Sinto você querendo ousar mais, o que é ótimo, pois atualmente há um excesso de patrulhamento de tudo e todos que cerceia muito da espontaneidade. Qual é a leitura que a Mallu Magalhães faz do Brasil atual?

É um tanto difícil falar do Brasil como uma coisa, só porque é bem amplo, grande, continental. É complicado falar qualquer coisa. E também é difícil, para mim, tecer grandes analises, falar com tanta categoria sobre os outros. Mal sei de mim! Porém, acho que o Brasil tem vivido um momento bem intenso e, ainda, interessante.

As pessoas terem se tornado mais políticas e mais críticas, mais atentas, mais preocupadas e mais sensíveis às questões todas, isso, sim, é positivo! Há quem diga ser um excesso de patrulha do politicamente correto e de preocupação. Acho que é válido: antes errar para mais a errar para menos; antes ser atento demais a ignorante.