Lições do mestre Odair José

Coisas que aprendi com Odair José sobre Odair José: detesta rótulos e não gosta de repetir fórmulas. Duas qualidades, na verdade, das quais dificilmente um artista como ele consegue escapar. Digo isso porque já são décadas de carreira, sucesso, e porque o mercado precisa de rótulos para sobreviver.

No que se refere a rótulos, especificamente, o cantor e compositor goiano foi presa fácil. Especialmente se lembrarmos que seu grande estouro comercial veio de temas peculiares. Quero dizer canções sobre pílula anticoncepcional, prostituta, empregada doméstica, uso/efeito de drogas, a tensa primeira vez de um homem… e por aí vai.

Talvez você tenha achado meio manjados os temas. Mas estamos falando dos anos 1970 brasileiros, quando a coisa era outra. “Não gosto de rótulo, seja qual for. Quando você rotula algo, principalmente a arte, ou está mal-intencionado, ou mal informado”, disse-me Odair José em uma entrevista de 2023.

Como discordar?

Odair José ganhou apelidos diversos, alguns até bem bizarras. Por exemplo, o cantor da pílula, terror das empregadas, Bob Dylan da Central do Brasil. Tudo porque seu trabalho incomodou, acredita ele – e provavelmente esteja certo.

“O compositor tem a obrigação de falar do seu tempo. Sou da opinião que quem repete fórmulas não faz arte, faz negócio.” Mais adiante na conversa falou algo complementar: “Minha função como compositor – acho que a de todos os compositores e artistas – é fazer músicas que tenham uma relevância. Você tem que divertir as pessoas, mas tem que fazer com que seu trabalho tenha relevância.”

Nossa entrevista deu boas braçadas pelas águas cristalinas da lucidez e a da sinceridade desbundada. Não houve respostas decoradas para assuntos comentados à exaustão ao longo dos anos. Se bem que ainda acho que ele economizou na hora de falar sobre a presença do rock em sua obra. “Nunca tive a pretensão de ser roqueiro.”

Mas vamos lá, vá além dos hits ditos bregas Eu Vou Tirar Você Deste Lugar e Uma Vida Só (Pare de Tomar a Pílula), e então descobrirá um constante sotaque rocker. “Alguém já disse que sou o cantor popular que mais levou o rock para as pessoas. Sempre andei pelo Brasil com minha guitarra pendurada no pescoço”, comentou depois de revelar ser fã de Beatles, Rolling Stones, Eric Clapton e, em especial, de instrumentistas. É um fanático por Fender Stratocaster.

Ora mais forte, ora menos evidente, o rock permanece lá nas músicas que grava ou apresenta (o show que vi em 2023 era genuinamente o de uma banda de rock). “Dizem que o cantor popular é o primo pobre do rock, ou o primo comportado…”, concluiu sem tanto compromisso.

Também tive uma impressão antiga mais ou menos correspondida – ainda no campo do rock. Vejo certo link entre a obra setentista do Odair José e um quê do Raul Seixas, no atrevimento ou no jeito afiado de observar a vida real. Senti isso realçado quando ele trouxe uma curiosidade à tona: “Meu primeiro LP, de 1970, tem uma música do Raulzito. Conheci o Raul em 1968, por aí. Ele foi comigo para o estúdio, inclusive tocou guitarra [nessa referida faixa, intitulada Tudo Acabado]. Andávamos juntos, conversávamos muito. Convivi com ele até 1973, 1974.”

Por mais que me esforçasse para desviar de rótulos, era impossível evitá-los. Tratamos, então, da origem de um deles, um dos clássicos, a tal música da pílula. Me surpreendi ao saber que a Ditadura Militar proibiu e jamais liberou a execução de Uma Vida Só (Pare de Tomar a Pílula). A música saiu em 1973 e mal tocou nas rádios.

“O Governo tinha um projeto de distribuição de anticoncepcionais gratuitos em rede hospitalar pelo Brasil e queria que o povo tomasse a pílula. A informação que tive em Brasília foi a de que a música não poderia ler liberada porque eu falava o contrário. E mesmo sendo proibida e não podendo tocar em rádio, virou um sucesso, enquanto o projeto deles, um grande fracasso. Talvez eu tivesse ajudado se não tivessem proibido.”

Peguei a ponta da censura e puxei para a entrevista. “Tive minha primeira dificuldade com Vou Tirar Você Desse Lugar. Fui chamado à Divisão de Censura do Rio de Janeiro e um cara me disse que a música não tinha passado porque falava ‘eu vou tirar você desse lugar’ e que não era de bom tom para o momento. Eu, jovem de 23, 24 anos, respondi que não estava me referindo ao governo militar, e sim a um cara que se apaixona por uma prostituta. Ouvi: ‘Pior ainda! Isso é uma coisa indecente! Olha onde o senhor está indo! A partir deste momento, então, todo disco que fizer terá que ser mandado pra cá e só poderá ser gravado depois da aprovação da Censura’. Estamos falando do início de 1972. No mesmo ano, faço o LP Assim Sou Eu…, também um grande sucesso, com vários hits de rádio. Tive dificuldades ali, com músicas que só pude gravar em 1973, outras que tive de mexer na letra e músicas que não foram gravadas. Em 1973, além da Pílula, tive outros problemas. Só como informação, depois do Chico Buarque, segundo pesquisa, eu e o Taiguara somos os compositores mais proibidos pela Censura no Brasil. São várias obras.”

Sempre mantendo o tom sereno, Odair José continuou no assunto. Falou do absurdo que ouviu ao tentar liberar a canção A Primeira Noite de Um Homem, de 1974, que acabou se transformando em Noite de Desejos, para destravar o lançamento do disco.

“Perguntei ‘o que posso mudar para vocês liberarem?’, e a resposta foi: ‘Não mude nada, porque o que está proibido é a ideia’. Esse negócio de ter a ideia proibida atrapalha, e muito. Evidentemente é uma retaliação. Teríamos que ser indenizados por isso, porque foi uma perseguição. Os caras mutilaram meu trabalho. Houve até uma carta do Governo para a gravadora, alertando que era melhor não gravar comigo porque eu era um péssimo exemplo para os jovens do Brasil.”

Apesar desses perrengues, Odair José atravessou os anos 1970 basicamente na crista da onda popular – “talvez, em determinado momento, o maior sucesso do Brasil, com as maiores vendagens”, arriscou. Pincei, então, uma das tantas experiências que o prestígio comercial lhe proporcionou, a famosa e homérica vaia ao lado de Caetano Veloso em 1973.

“Ia acontecer o Phono 73, um festival de três dias em São Paulo, feito pela Phonogram. Eu estava fazendo muito sucesso. Era o cara que mais vendia discos na gravadora – vendia, sozinho, mais do que 70% do cast. Não iria participar do festival, nem tinha tempo para aquilo. Fazia 30 shows por mês. Mas quando recebi o recado do André Midani dizendo que o Caetano Veloso estava me convidando para cantar com ele, me senti muito honrado. Sempre fui fã do Caetano.

Fretaram um jatinho para mim até São Paulo, para conversar com o Caetano. Perguntei o que faríamos, e ele: ‘Vamos cantar Vou Tirar Você Desse Lugar, porque amo essa música’. Perguntei se faríamos com banda, e ele disse: ‘Não. Faremos com violão: você toca e a gente canta’.

Lá pelo meio do show, o Caetano me chama. Eu entrei no palco, e o público achou um absurdo levar o cara da parada do rádio para cantar ali. Me vaiaram, e a vaia foi grande mesmo, a ponto de o Caetano Veloso falar ao microfone que nunca tinha visto uma classe A ser tão Z. Depois, ele jogou o microfone no chão e saiu. Os produtores do evento, Nelson Motta e Artur da Távola, me cutucaram: ‘Fica aí, que ele vai voltar’. Então, comecei a tocar minhas músicas no violão. O povo ficou meio calado. Levou um susto com a atitude do Caetano. Cantarolei até Pílula, que era proibida, e um monte de coisas. O Caetano voltou e cantamos Vou Tirar Você Desse Lugar – mesmo assim, debaixo de vaia. Mas foi uma delícia, um momento maravilhoso!”

Uma entrevista boa e completa com Odair José jamais ignora o disco O Filho de José e Maria. Lançado em 1977, o coloco como o ápice da carreira dele. Simplesmente uma obra-prima, gravada, aliás, com a sensacional banda Azymuth.

O álbum veio numa intensidade bombástica, até mesmo para o público. “Foi além da curva para aquele momento”, avaliou. “As pessoas se assustaram muito com aquilo. A crítica em si foi a sociedade de um modo geral contra o trabalho, que hoje, graças a Deus, é aceito e consagrado, visto como único.”

Conforme Odair José falava, eu ia ficando ainda mais fascinado pelos estragos que O Filho de José e Maria promoveu (estragos desbravadores, diga-se). “A Igreja Católica me ‘excomungou’ por ter feito esse disco – e eu não estou nem aí pra isso!”

Quer um contexto melhor para delinear uma obra deslocada de seu tempo? E o próprio artista é ciente da amplitude do que fez naquele final de década. “Na verdade, se não existisse O Filho de José e Maria, não sei nem como é que seria o Odair José. Fiquei pensando esse disco uns dois anos, desde 1975. Achei que tinha feito um projeto maravilhoso. Aí, deu no que deu: todo mundo virou a cara. Era como se eu tivesse cometido um crime. Ninguém me apoiou, só o Guilherme Araújo, meu produtor. É um disco que cada vez que escuto fico mais impressionado.”

E tem mais, se os rótulos (sempre eles) com apelos pejorativos se popularizaram a partir dos anos 1980, como ele me disse, isso vem em grande parte de O Filho de José e Maria. Melhor dizendo, vem da bucha que nem Odair José conseguiu segurar. “Depois daquilo, realmente tive receio e fiquei certo tempo repetindo fórmulas, justamente o que condeno. Daí, meu trabalho foi ficando menor.”

Isso nos ajuda a entender os lançamentos fracos que vieram e que reforçaram os apelidos toscos.

A entrevista terminou exatamente onde estávamos, em 2023. Quis saber como o cronista musical vê o mundo contemporâneo. Ele usou de um otimismo enigmático para responder: “A humanidade está caminhando para o abismo da involução, mas acho que podemos recuar e repensar. Torço para que isso aconteça.”

Sobre a era dos streamings, praxe do momento, obtive mais sinais do otimismo enigmático. “Costumo dizer que havia duas coisas que eu pensava que não veria. Uma é a piora do ser humano como ser humano, e infelizmente isso aconteceu. A outra é essa evolução da tecnologia. Sabia que era possível, mas achava que não veria.”

Na verdade, aprendi mais que duas coisas com Odair José sobre Odair José. E nem me refiro mais a rótulos. Até porque artistas como ele não escapam do que chamo de metonímia artística, uma necessidade obsessiva do mercado para sobreviver. Digo que pude entender melhor o cara por trás da obra. Mas se você ainda quiser um rótulo para compreender a que me refiro, fique com este: um grande músico compositor brasileiro.

*Foto: Bernardo Guerreiro