Edgard Scandurra, um outsider

O Scandurra é daqueles guitarristas que se fosse americano ou inglês, por exemplo, provavelmente seria uma grande referência. Seu estilo carrega uma visceralidade e produz um timbre que destacam a abordagem. Garantem-lhe uma cor extra em relação a outros.

Desde antes de mergulhar no jornalismo musical o considero um de nossos expoentes. Porém, se há um negócio que aprendi trabalhando na área é que o público brasileiro tem horror a artista brasileiro. De forma geral, claro, mas entenda “geral” como um conceito bastante amplo.

Tanto na Guitar Player quanto na Bass Player, era só aparecer brasileiro na capa para recebermos uma enxurrada de críticas, pedradas e demonstrações de aversão diversas. Mas também acontecia algo paradoxal: se não colocávamos brasileiro na capa, reclamavam… Por isso tínhamos que caminhar em corda bamba com as matérias de capa, mesmo porque manter revista impressa exige custos altíssimos.

À parte dessa observação, foram inúmeras as entrevistas que fiz com o Edgard Scandurra. A primeira grande pauta veio em 2006, num momento interessante: sua carreira atingia os 25 anos; o Ira! havia terminado há não muito tempo o ciclo de divulgação do Acústico MTV; e ele tinha um novo álbum solo, Amor Incondicional. Assim, traçamos uma oportuna ponte entre presente e passado.

Ele mostrou uma ponta de orgulho por ter tido uma formação diferente, influenciada pelo irmão mais velho. “Eu tive sorte de em 1967 ou 1968, enquanto estava todo mundo na Jovem Guarda, ter em casa discos do Led Zeppelin, Deep Purple, Jimi Hendrix. Meu irmão tinha uma cópia da guitarra Vox, inglesa, feita pelo irmão do Sérgio Dias (Mutantes), além de wah-wah, distorção, um amplificador Tremendão, da Giannini, e ele fazia a guitarra falar. Parava o trânsito. Ficava gente querendo saber de onde vinham aquelas microfonias. Desde moleque, tive boas referências na minha casa. Isso me levou a já estar fazendo solos e tocando relativamente bem com uns treze anos.”

Quando nos falamos, não fazia tanto tempo que a Giannini havia relançado a emblemática Supersonic. O modelo marcou a carreira de Scandurra nos anos 1980. “Demorei oito anos para ter outra guitarra. Em 1990, comprei a minha Fender Stratocaster Eric Clapton verde, que é a guitarra que mais uso até hoje.” E completou, também orgulhoso: “Essa nova Giannini Supersonic que tem no mercado é cópia da minha”.

Por ser um artista que se posiciona e que não foge de assunto, me senti à vontade para provocar seu senso autocrítico: o que já gravou e nunca gostou? “Música Calma Para Pessoas Nervosas foi cruel para o Ira!”, respondeu. “Era o último disco do contrato com uma gravadora. O produtor que estava trabalhando conosco teve que sair na metade, e acabamos produzindo sozinhos. Nos sentimos meio abandonados. Sobrou para o som, que não é dos melhores. Deixa muito a desejar em timbre, em arranjo, e isso é uma pena.”

Para minha alegria jornalística, Scandurra estendeu a autocrítica. Falou do bem-sucedido Isso é Amor, de 1999: “Algumas das faixas, eu simplesmente não consigo ouvir novamente. Acho que ficamos um pouco perdidos dentro do estúdio, embora tenha sido um álbum importante para nós. Demos a volta por cima num momento em que andávamos bem desanimados, em baixa, sem ver muito horizonte. Deu uma superlevantada. Se fosse outro disco experimental, outro Psicoacústica, talvez tivéssemos cavado o próprio buraco. Mas não é um dos meus dez favoritos do Ira!”.

Numa época em que reinava a fritação guitarrística (aquele monte de chatos tocando solos técnicos e à velocidade da luz), incluir o Edgard Scandurra numa lista de destaque soava uma heresia. Perguntei, então, se ele se considerava um outsider, e esse foi outro ponto legal da entrevista de 2006.

“Me considero total outsider! O fato de estar aí há vinte e cinco anos numa banda e na música, com um nome dentro da guitarra importante para muita gente, e pouco ter saído em revistas especializadas já mostra que sou um outsider” – talvez esta tenha sido uma alfinetada à revista para a qual eu trabalhava, a Guitar Player (será?). Um ótimo contraponto.

Mas sua resposta seguiu: “Quando vou a uma feira de instrumentos, me sinto totalmente fora da panela dos guitarristas. Particularmente, não tenho tanta paciência para conversas de guitarristas. Acabam se repetindo no modelo da guitarra, no pedal que estão usando, na palheta e amplificadores. E eu sou calvo. Talvez se fosse cabeludo pensasse diferente [risos]. Me sinto bem fora da panela e fico feliz com isso. Não que eu tenha antipatia por alguma panela, mas é que não faço questão de participar desse universo e estudar quatro ou cinco horas por dia. Sou um outsider totalmente convicto. Aliás, sou um outsider em todos os sentidos dentro da música. Não tenho nenhum tipo de estereótipo. Às vezes, parece que sou músico por acidente.”

Realmente, aquele era um momento interessante na carreira de Edgard Scandurra. O que minha percepção não pôde captar é que estávamos na iminência de uma grave crise na carreira do guitarrista (talvez nem ele). Em 2007, viria à tona o racha no Ira!, pouco após a banda lançar o álbum Invisível DJ. Nasi para um lado, os três remanescentes para outro.

Ao revisitar as entrevistas que fiz para a Guitar Player, vejo que cobri o percurso completo dessa passagem tensa no rock nacional. Quero dizer que conversei com o Scandurra no rompimento do Ira!, após o fim da banda e quando ele e o Nasi reataram a amizade. Hoje é curioso observar o contraste tão berrante entre as opiniões.

2007
Após o fim do Ira!, Edgard Scandurra, Ricardo Gaspa e André Jung rascunhavam seguir juntos com um novo projeto, provisoriamente batizado de O Trio. O assunto da crise ainda estava no olho do furacão quando entrevistei o guitarrista.

“Da minha parte, não cabe difamar ninguém ou ficar respondendo crítica à altura. É responder com trabalho”, disse. “Quero usar as ideias para fazer algo novo com O Trio. Minha vida sempre foi música. Não quero me prender a esse lado da baixaria. É uma pena acabar como acabou, mas o que importa agora é olhar para a frente e dizer alguma coisa com nossa música. É o que fica e foi o que ficou do Ira!, nosso repertório. Isso é muito mais importante do que o discurso que qualquer integrante possa fazer.”

2009
Dois anos depois, os planos eram outros.

Quando o Ira! acabou, você, o Gaspa e o André Jung cogitaram continuar juntos, com uma banda chamada O Trio. No que deu essa ideia?
Fui o primeiro a dizer adeus para esse projeto, mas não houve insistência da parte de ninguém para que tentássemos mais um pouco. Acredito que nenhum de nós estava com vontade de tocar as velhas canções do Ira!. O fim da banda foi traumático: fiquei doente, envelheci, li coisas horrorosas a meu respeito e acabei perdendo o tesão na banda. Resisto em tocar o repertório do Ira! – mesmo eu sendo o compositor de 99% dos singles que lançamos. A pressão seria grande demais para que nós três tocássemos Ira!, e isso não me interessa nem um pouco. Não sofro de torcicolo musical, então, não me interessa ficar olhando para o passado e relembrando-o ao vivo.

Mas há chance de o Ira! voltar algum dia?
Acho impossível. Centenas de desculpas e perdões sinceros seriam necessários, e isso não vai acontecer tão cedo – e, possivelmente, nem tão tarde. É bom que tenhamos criado uma história bacana e que o público lembre daquela banda que incendiava os palcos e criava discos fantásticos, apesar dos problemas que tínhamos. Eu até poderia pensar como um empresário e ver o Ira! como uma indústria, reunindo a galera e voltando à estrada. Mas não tenho essa vocação comercial. Sou muito romântico com aquilo em que acredito, e creio muito em minha carreira. Se foi fechada uma porta com o fim do Ira!, inúmeras outras se abriram. E isso é o que me traz alegria, me inspira e me faz acreditar na minha arte.

Fazendo um balanço, como compara seu foco em carreira solo e com o Ira!?
O Ira! vivia no famigerado mundo do pop rock. Então, era necessária uma linguagem popular em minhas letras e canções. Em carreira solo, espero que me vejam como um compositor que transcendeu o mundo pop, que pode criar trilhas e experimentar sem rabo preso a rádios, TVs, gravadoras e produtores loucos por sucesso comercial – porém, sem me tornar difícil e elitista. Não é do meu interesse ser músico para poucos ouvintes.

2012
Edgard Scandurra foi um dos seis guitarristas que escolhi para a matéria de capa histórica da edição de número 200 da Guitar Player. Naquele ano, seu humor em relação à antiga banda parecia menos rancoroso, embora ainda reticente.

Chegar a 30 anos de carreira é sempre um marco. Você pensa em fazer algo em relação ao seu início? De repente, uma edição comemorativa do primeiro compacto do Ira! ou coisa do tipo…
Seria legal se isso pudesse acontecer com o Ira!. Não digo de nos envolvermos, porque acho que ainda não é o momento para isso. Mas alguém poderia levantar essa bola, de um projeto em que talvez outras bandas regravassem nossas músicas. Um tributo ao Ira! seria lindo! Há muitas bandas novas que poderiam fazer versões incríveis. É um projeto a ser pensado.

2013
Logo que a notícia da reaproximação de Scandurra e Nasi surgiu na internet, corri por uma entrevista. Ambos voltariam a dividir um palco em outubro de 2013, para um show em prol de uma escola que apoia crianças e jovens com dificuldades de aprendizagem.

– Sobre a amizade com Nasi: “No final de maio, pouco antes de embarcar para uma turnê na Europa com o Arnaldo Antunes, procurei o Airton Júnior [ex-empresário do Ira!], irmão do Nasi. Eu estava organizando o show na NANE e queria saber se ele poderia me dar umas dicas, já que trabalhou com produção de eventos. Naquele dia, o Airton me falou que o Nasi queria entrar em contato comigo há algum tempo, mas estava receoso. Não sabia se eu iria receber bem seu telefonema, porque, afinal de contas, não nos falávamos desde 2007. Eu disse que podia me ligar. Então, um dia antes da minha viagem para a Europa, o Nasi me ligou em casa, contou que ficou sabendo do show na NANE e se colocou à disposição para colaborar. Falou que gostaria que recomeçássemos nossa amizade, que apagássemos o passado, enfim. Foi uma conversa bem legal, surpreendente para mim. A partir dali, retomamos o contato em função desse projeto. Não gostaria de carregar comigo uma inimizade, algo mal resolvido. Superamos isso e agora nos falamos com certa frequência. Ontem eu me encontrei com ele para conversarmos sobre o repertório e pensar no show. Foi ótimo!”.

Volta do Ira!: “Estou acostumado a lidar com diversos trabalhos e a ter vários projetos e tentar honrar o máximo possível todos eles. Uma volta da banda seria algo a se pensar, mas no momento a gente quer dar um passo de cada vez. Temos esse show, que será importante. Falar novamente com o Nasi, depois de 6 anos, foi superlegal. Já é um passo muito positivo, um avanço. Agora, há mais dois caras na banda, o André e o Gaspa, e um monte de coisas para se conversar ainda. Acho que é um pouco cedo para se falar em volta da banda”.

O alívio: “Eu gostaria que o André e o Gaspa pudessem recuperar a amizade com o Nasi e resgatar essa parceria de tantos anos. Não quero envelhecer com um carma de alguém com quem dividi palco por mais de 20 anos. É um peso a menos nos problemas do dia a dia. Estou muito feliz e aliviado por ter superado essa crise”.

No final das contas, o Ira! voltou sem André Jung e Gaspa. E isso não foi um problema concreto, já que a banda mantém seu núcleo original e mostrou ter lenha no estoque para queimar. Assim como o próprio Scandurra, que soube tratar bem a verve e ainda nos garante o deleite ao vivo ou em estúdio.

*Foto: Henrique Inglez de Souza