Da Lama ao Caos: a revisita de um homem-caranguejo

Montagem artística baseada na capa do disco Da Lama Ao Caos, de Chico Science e Nação Zumbi

A década de 1990 pariu a última efervescência na música brasileira. E uma dessas crias foi o manguebit. Em 2024 fecha-se um ciclo especial, pois são 30 anos de Da Lama ao Caos.

O álbum de estreia de Chico Science & Nação Zumbi permanece em constante devoção. Não por acaso, já que ali está toda a essência da receita sonora do grupo. Um poço de assuntos a se explorar.

Bati um papo com Lúcio Maia dias antes de sua recente vinda a Piracicaba, para um evento no Sesc. Foi uma entrevista diferente das tantas que já fizemos. Focamos somente no disco, um sugestivo pontapé inicial para se compreender a cena recifense que o projetou.

Caranguejos outsiders
O funcionário público Francisco França virou Chico Science por causa das alquimias sonoras. O amigo jornalista Renato Lins, importante na cena manguebit, o chamava de Science. Ele gostou e adotou o apelido.

Banda de rock não era exatamente sua meta de vida. Música, sim. Por isso preferia sempre temperar suas investidas. Mas até Chico virar Science houve uma caminhada. E a partida aconteceu justamente numa banda de rock, no final dos anos 1980.

Era uma das primeiras empreitadas de Lúcio Maia, na época adolescente. “Ele frequentava os ensaios. Foi ali que o conheci. Um tempo depois, essa banda acabou e Chico me convidou para formar outra, o Orla Orbe. Foi o início de tudo. Ficamos muito amigos. Saíamos do ensaio e ficávamos conversando ou íamos tomar cerveja no Alto da Sé, em Olinda.”

No Orla Orbe, a coisa era séria para Chico. Enquanto Lúcio e os demais integrantes curtiam, ele mirava um futuro na música. “Dávamos risada, porque o achávamos um sonhador”, diz o guitarrista, que repensa. “Chico foi mais visionário que sonhador.”

Essa perseverança vinha carimbada por um traço forte de personalidade. Ele gostava de romantizar a vida. “Fizemos um show em Paulista, município próximo a Olinda, promovido por um amigo do meu pai. Lembro de Chico dizer: ‘Boa tarde, Paulistaaa!’, como se estivéssemos num show grande [risos]. Depois comentou conosco: ‘Meu sonho era chegar e falar isso, sabe? Boa noite ou boa tarde…, e chamar a cidade’’’.

Apesar das risadas, o pessoal do Orla Orbe embalava nas ideias do vocalista. “Era um cara que acreditava muito em si mesmo. Tinha uma espécie de excesso de autoconfiança, e isso era transmissível.”

No início dos anos 1990, o marasmo em Recife incomodava o suficiente para que surgissem diversas bandas. O fato de a capital ter sido ranqueada a quarta pior do mundo em qualidade de vida também servia como gás para uma reação.

No caso de Chico, o contexto inspirou alquimias que resultariam no que originou o som que conhecemos, já com a Nação Zumbi.

Àquela altura, havia uma cena de festas bombando por lá. Noitadas regadas a música ao vivo, normalmente autoral. Havia algo de especial acontecendo.

Porém, engana-se quem pensa que os artistas caminhavam juntos. Nos bastidores rolavam picuinhas. Por exemplo, nem todos iam com a cara dos chamados mangueboys. “Quando aparecemos, tiravam sarro. Não nos entrosávamos com o resto das bandas porque éramos tidos como outsiders.”

Fred Zero Quatro, do Mundo Livre S/A, era uma das exceções. Partilhava das ideias de Chico Science & Nação Zumbi. Chegou a morar com Chico, quando eles criaram uma rotina de ideias que fortaleceu ambos os lados. Assim, os dois grupos passaram a trabalhar juntos.

Na edição de estreia do festival Abril Pro Rock, em 1993, os outsiders do pedaço foram escalados para abrir a programação. Talvez tivessem passado despercebidos, não fosse o interesse de determinados convidados – a MTV e o produtor Miranda.

A partir dali a cena virou assunto e ficou legal receber a etiqueta manguebit, mesmo para quem criticava. “Todos quiseram colar com a gente, mas até então éramos os outsiders.”

Modernizar o passado
O show no Abril Pro Rock de 1993 foi um sucesso para Chico Science & Nação Zumbi. Se pensarmos nos desdobramentos, não resta dúvida. Um ano depois, a banda promovia seu disco de estreia, Da Lama ao Caos, lançado por um selo da gigante Sony Music.

Do ponto de vista midiático, na época deve ter sido mais fácil (e provocador) focar a proposta no maracatu. Mas a salada multifacetada do material transborda a vasilha do rock com maracatu. “É bastante eclético. Há diversas referências ali, não só maracatu”, diz Lúcio Maia. “Tem coco, ciranda, funk, metal, hip hop, na mesma música. Impactou bastante.”

A alquimia deles não vinha de uma fórmula preestabelecida. Saía espontaneamente. Porém, havia algo norteando cada passo de Chico Science, Lúcio Maia, Dengue, Toca Ogan, Gira, Canhoto, Gilmar Bola 8 e Jorge du Peixe.

O negócio era romper com o trivial. “Lembro de Chico cantar Risoflora para mim ao violão, de um jeito bem romântico. Aí, eu botei uma guitarra pesada pra caramba”, diverte-se. “Mas foi aceito, porque a ruptura da mesmice era fundamental.”

O nome do álbum vem de referências de Chico Science. Uma delas, a infância no mangue pegando caranguejo, é geral para a banda inteira. “Todo mundo fazia isso quando pequeno. Era algo corriqueiro para a gente fazer armadilha de lata de leite em pó para pegar caranguejo. E Chico uniu isso às suas descobertas sobre a teoria do caos.”

O grupo jamais pregou que tenha criado a mistura de gêneros musicais. Nem daria, ainda mais depois de Tropicália, Alceu Valença, Zé Ramalho, Raul Seixas, etc. Sua magia foi resgatar o passado e, como dizia Chico, envenená-lo com roupagem pop.

A cerveja antes do almoço pra ficar pensando melhor soou simpática e o público gostou. Lançado em abril de 1994, Da Lama ao Caos trouxe “a carga de levar uma ideia a sério demais, aproveitando para pegar carona na diversão”, sintetiza Lúcio o espírito por trás do álbum.

Intimidador
Da Lama ao Caos teve produção do renomado Liminha. Por mais que a essência esteja lá, é difícil acreditar que o repertório tenha saído ipsis litteris como o grupo o concebeu.

“Realmente, Liminha deu uma lapidada”, confirma o guitarrista. “Na época, disseram que o álbum não era legal porque ao vivo éramos muito melhores, tínhamos uma força que não havíamos passado no disco.”

Lúcio teve seu momento crise interna. Admite que se deixou levar pelos comentários negativos. Mas o pessimismo durou pouco, até Afrociberdelia, quando a banda se ligou da força de seu disco de estreia.

“No fundo, eu gostava do Da Lama ao Caos. Sempre gostei. Hoje me emociono e me impressiono.” Mesmo Liminha, ele não o demoniza: “Foi fundamental para a gente.”

Acontece que resumir assim soa simplista demais perto da experiência. A começar que eles queriam Arto Lindsay na produção, mas não rolou – “Em 2002 conhecemos o Arto e ele disse que nunca o procuraram”, espeta o guitarrista.

Estamos em agosto de 1993 e a contraoferta da Sony incluía iniciar as gravações dois meses dali. Tentador por se tratar de quem era. “A primeira coisa que Chico falou foi: ‘Liminha foi baixista dos Mutantes’.” Pronto, toparam.

O grupo viajou ao Rio de Janeiro, rumo ao estúdio Nas Nuvens. Berço de grandes álbuns, o local esbanjava altíssima qualidade por todos os cantos. E lá estavam eles se tremendo diante de seu produtor.

“Liminha era um cara intimidador. Vinha com aquele olhar sedutor, tomava a guitarra da sua mão e tocava na sua frente para intimidar. Para mostrar que sabia fazer.”

A coisa pesou geral. “Entrávamos na sala dele e o cara tinha, sei lá, uns vinte discos de ouro na parede. Era intimidador.” Chico Science teria sido poupado do baque por conta da afinidade de ideias com o produtor.

Por fim, a banda usou da resiliência para se posicionar, e as gravações fluíram. “Sabíamos que tínhamos potencial.”

Movimento manguebit?
A faixa A Cidade chegou primeiro às rádios e a projeção de Chico Science & Nação Zumbi entrou em modo de expansão. Paralelamente, o Mundo Livre S/A lançou seu debute, por outra gravadora. O mapa estava formado para o boom midiático do manguebit.

“Esse boom nunca aconteceu”, rebate Lúcio Maia. “Tivemos um grande holofote de mídia como novidade, e foi só isso. Conseguimos um circuito de shows importante, mas muito com a Sony dando suporte.”

Para o público, o sucesso veio. Ganhou mais corpo com Afrociberdelia e se calcificou de vez após a morte de Chico Science, em 1997. A tragédia vendeu mais discos e também diluiu o bafafá manguebitesco. Algo similar ao grunge depois da morte de Kurt Cobain.

Quando usei o termo “movimento”, veio outra rebatida. Contudo, essa me convenceu: “O manguebit não foi um movimento. Movimento agrega uma definição estética, e isso não existiu entre nós. Sempre me refiro como cena mangue. Talvez o lance da antropofagia fosse o único link entre todos.”

Cena ou movimento, Da Lama ao Caos tornou-se o estandarte de algo único. Atravessou o tempo sem avarias como um dos melhores registros da última década de grande efervescência na música brasileira até aqui. E lá se vão 30 anos.

*Matéria publicada na minha coluna Playlist, no jornal A Tribuna Piracicabana, em 09/11/2024
*Arte: Henrique Inglez de Souza