Jamais pensei que um dia entrevistaria a Cyndi Lauper para a Guitar Player. Jamais pensei que entrevistaria a Cyndi Lauper para falar de um disco de blues… dela! Mas o jornalismo musical tem dessas coisas um tanto improváveis. E mesmo quando não estamos indo atrás da pauta, de repente, o acaso vem e nos surpreende com maestria.
Tive várias boas surpresas assim. Esta daqui aconteceu em meados de outubro de 2010. Me ofereceram a oportunidade de conversar com a Lauper por dois motivos: a cantora havia lançado o álbum Memphis Blues meses antes e, principalmente, porque traria a respectiva turnê ao Brasil.
É lógico que topei.
Num primeiro momento, uma figura que é superícone pop dos anos 1980 e o blues raiz parecem universos distantes e distintos. Só que estamos falando de música, e nessa arte tudo é possível. Aí está uma das características de que mais gosto.
“Fazia uns oito anos que eu queria gravar esse disco, e por várias razões nunca dava certo”, contou-me ela, na entrevista publicada no site da Guitar Player em outubro de 2010. “Sou fã de blues desde criança. Escutei um disco do gênero pela primeira vez depois de ler em uma matéria que uma das minhas bandas favoritas era fortemente influenciada pelo estilo. Então, saí para comprar álbuns de Muddy Waters, Ma Rainey e Big Mama Thornton, e me apaixonei.”
Memphis Blues é um trabalho excelente. Feito com capricho na escolha do repertório (de regravações), nos arranjos e na produção. Se presta à altura como uma respeitosa reverência ao blues old school. Não força a barra. Me impressionou logo que ouvi.
Sobre revelar ao mundo seu lado blueseiro, Cyndi Lauper garantiu: “Tentei dar o máximo de mim para me manter fiel ao estilo” – e conseguiu. “Fizemos esse disco à moda antiga: totalmente ao vivo. Ao longo de duas semanas, o material estava basicamente pronto. Gravamos uma canção por dia. Trabalhava os arranjos no início da tarde, ensaiava um pouco com a banda até que todos estivessem satisfeitos e, então, gravávamos algumas vezes. Depois, escolhíamos as melhores versões de cada faixa. Não houve overdubs nem pós-produção demasiada. Tentamos fazer da maneira mais genuína e dar nosso melhor em cada momento.”
Se fosse um registro mais enxuto, só ela e sua banda, Memphis Blues já convenceria. Porém, a cantora incluiu cerejas nesse bolo. Refiro-me a convidados como Jonny Lang, Charlie Musselwhite e o maior de todos, B.B. King (para mim, a chancela definitiva do projeto).
“Uma vez, encontrei o B.B. King quando estava na escola e pude cumprimentá-lo. Dá pra imaginar que mais de 30 anos depois estaria gravando com ele?! É um gênio! Mal consigo acreditar que trabalhamos juntos!”, empolgou-se.
Cantora pop lançando disco de blues? Presta? Bom, se você pensou nesse tipo de coisa, diria para ouvir com o espírito desprevenido de preconceito. Cyndi Lauper mostrou-se ciente do efeito de estranhamento, e até certa apreensão, em relação à ideia de cair na estrada e encarar seu público com algo tão ousado para os padrões limitantes da indústria musical.
“Pra ser honesta, estava um pouco tensa em relação ao que meus fãs achariam de eu estar fazendo um show de blues. Tenho alguns dos melhores músicos de blues na estrada comigo. Na maior parte do repertório, tocamos Memphis Blues e na parte final, toco meus sucessos em arranjos blues. Espere só para ouvir Girls Just Want to Have Fun e She Bop nessa roupagem. Ficaram muito legais! Meus fãs têm me acompanhado nessa empreitada. Tenho tido respostas excelentes em todos os lugares.”
A turnê deve ter sido motivo de orgulho para a cantora. No Brasil, os shows ocorreram em fevereiro de 2011, com saldo positivo. O pessoal curtiu a vibe “girls just want to have fun with the blues too”.
Sim, jamais pensei que entrevistaria a Cyndi Lauper para a Guitar Player, ainda mais para falar de um disco seu de blues. Mas como eu disse: o jornalismo musical tem dessas coisas inusitadas. É por isso que sou apaixonado pelo que faço. A caminhada tem graça porque nunca segue uma trilha linear.
Imagem: Reprodução