Displicina. Leia novamente. Talvez tenha dado uma bugada. Taí um bom princípio de conversa, já que o nome sugere o tipo de som que a banda gravou em seu novo álbum. Vem do sample linguístico entre disciplina e displicentia.
“É culpa do Bones”, dedura Alex Antunes, referindo-se ao chapa Fernando Bones. “Quando o procurei para montar o grupo, Displicina era o nome de um single. Antes de tudo, fiz uma capa para o disco e mostrei a ele – nem lembro como chamei a banda. E o Bones falou: ‘Inverte isso daí. Displicina é o nome da banda’.”
As Núpcias Ósseas não é playlist que se escuta indo para a balada. Menos ainda, não dá para curtir junto da vovó. A menos que a vovó curta porra seca nos pentelhos e outros temas escatológicos nas letras.
Às vésperas do 15 de novembro, conversei com o Alex sobre o Displicina. Uma entrevista via chamada de vídeo. O formato até combinou com a pegada tecno-esquisitice da banda. Se bem que, a esta altura, meu gravador de fita cassete cairia melhor. Enfim.
Para quem não consome música experimental com frequência, meu caso, ouvi bastante As Núpcias Ósseas. Minhas opiniões mudaram conforme digeria o material. Vinhetas diversas estendem um fio pelo qual se enfileiram as canções. Tipo um varal sonoro.
De ponta a ponta, esbarramos por grooves intensos, melodias sinistras, colagens sonoras, acenos ao cinema e letras ora cômicas, ora ácidas, e ora desbocadas – incluindo a da porra seca nos pentelhos. Um combo sob a égide temática da morte.
Como nasce um disco assim? – perguntei. Na esteira de uma gargalhada espontânea, Alex atribui às inspirações diretas. “Em geral, o que fazemos é menos estratégico, menos de escolhas. Como dá para perceber, temos certa queda pela esquisitice, no sentido de gostar do que causa inquietação. As pessoas da banda vão impressionando umas às outras com suas ideias esquisitas.”
As Núpcias Ósseas é um álbum bastante visual. Indo exatamente do início ao fim, parece que ouvimos o desdobrar de um filme. Um filme esquisito, claro. Imagine as produções da Boca do Lixo com uma perspectiva modernista. É meio por aí, só que na forma de música e com um mascote híbrido de Mickey Mouse e Jason Voorhees.
Comentei sobre esse aspecto visual, sugerindo um forte potencial para uma extensão em vídeo. Um curta-metragem, quem sabe. “Talvez a estrutura do álbum se preste a virar um vídeo mesmo. É uma boa ideia transformá-lo, exatamente na ordem de faixas, numa peça em vídeo. Dá pra recuperar pelo menos uma parte do que usei de samples do jeito como eram visualmente, ou criar visuais em relação com isso.”
Cheguei a imaginar que os shows, previstos para o início de 2025, também pudessem ir nessa linha. Porém, Alex adianta que será de outro jeito, pois haverá convidados e composições que não são do As Núpcias Ósseas.
SAMPLES EXPLÍCITOS
Esquisitice é um traço de Alex Antunes em suas investidas musicais. Jamais o veremos dedicado a um projeto estilo Jota Quest (hum… será?). Isso vem desde os anos 1980, quando emparelhou o jornalismo à veia de artista desconstrutivista, digamos.
A proposta e o perfil do Displicina são outros, mas fica óbvia a conexão genealógica entre As Núpcias Ósseas e o Akira S a As Garotas Que Erraram. “Isso, absolutamente, não foi intencional”, frisa. “Fomos parar num lugar curiosamente parecido. Uma parte da estética da coisa tem a ver com o pós-punk, mas com esse monte de samples e recursos que não tínhamos na década de 1980.”
A conexão genealógica ganha argumentos fortes. A começar que Akira S fez programações para o disco. E na obituária O Funeral de Alex Antunes, ele surge assim, meio no sarro em uma faixa escondida.
“Uma época, o Akira ficou bravo comigo por alguma coisa e teve um papo com o Miguel Barella pelo celular. Depois o Miguel relatou isso a um outro amigo nosso com uma imitação do Akira dizendo que iria me matar. E esse amigo me passou essa imitação. Resolvi inseri-la segundos depois que a música acaba.”
Contudo, há peculiaridades extra-Akira também. A faixa em si é sobra do projeto Alex Antunes & Death Disco Machine, de 2021. Os vocais da gravação original, a que saiu, foram divididos com João Marcelo Ferraz, do Ex-Exus. Diferente da aproveitada aqui.
“Ele fez vários takes para a música Quando Você Morrer e me mandou”, conta. “Num deles meteu esse caco do ‘é o funeral de Alex Antunes’, e não era para eu usar. Mas montei uma versão em cima de um sample bem descarado. Achei que era um jeito divertido de acabar As Núpcias Ósseas.”
E lá no finalzinho, depois da falsa e velada ameaça do Akira, ainda há outra faixa escondida. Um eletropop do Fernando Bones pontuado por um groove bacana de baixo. Assim, num clima pra cima, termina efetivamente o disco. “Para não acabar na minha morte”, alivia Alex.
Não me considero um cara mergulhado no universo da experimentação. Porém, o material do Displicina tem qualidades que me fisgaram. Costumo gostar de colagens sonoras à base de samplers, e há músicas bem digeríveis aqui. Exemplos: a oitentista Friedkin: Pasolini (You Can Hear the Bones Humming) e o eletrojunk-axé Os Bones do Ofício (Que Mário), também com uma quedinha meio Akira S e As Garotas Que Erraram.
Tit-Flash-Death (Harrison Ford Said) provavelmente seja a que mais gostei. E que raio de nome é esse? Gargalhando, Alex explica que vem de uma entrevista do Harrison Ford que ele editou para a revista SET na segunda metade dos anos 1980.
“Ele usou essa expressão para tirar sarro de filmes de terror. Disse que os filmes de terror têm o fator ‘tit-flash-death’: toda vez que alguém paga peitinho, passa um curto período de tempo e há uma morte. O Ford falava daqueles filmes de exploitation. E sempre morri de rir com essa ideia do tit-flash-death, então inseri o ‘Harrison Ford Said’ porque o disco estava ficando com várias referências cinematográficas. Resolvi meter essa relação totalmente obscura com o Harrison Ford.”
A obscuridade fica ainda mais peculiar quando notamos que o riff sampleado é o de A Praieira, do Chico Science & Nação Zumbi. Para usar um terminho em voga, eles ressignificaram e bem o clássico manguebit.
No fundo, também gostei da expressão do ator de Indiana Jones. Me ajudou a organizar a impressão que tive sobre As Núpcias Ósseas.
NADA ALEATÓRIO
O quê de escatológico e as esquisitices costuraram bem a liberdade criativa do Displicina. Não se trata de um amontoado de barulhos ou de um mosaico desforme que eles resolveram classificar como música. Tudo se encaixa a um contexto.
As composições surgiram de ideias musicais e letras combinadas com alguns dos trocentos arquivos de áudio que superlotam computador do Alex. Segundo ele, a filtragem passou pelos rígidos critérios do Operador – termo emprestado de William Burroughs e Brion Gysin para usar no lugar de inspiração.
O mecanismo é simples: o que não agrada vai pro lixo. “Esses momentos são importantes porque são quando sei que continuo com critérios. De vez em quando tem que ter uma coisa que eu tento e que fica uma bosta. Só pra checar se ainda estou com uma ferramenta de corte.”
O grande parceiro de Alex Antunes aqui é Fernando Bones. “É um cara que tem o talento de ser comunicativo, algo pelo que tenho muito apreço. Gostaria de ser mais comunicativo quando sou esquisito, mas às vezes tudo o que consigo é ser esquisito [risos].”
Escrever, arranjar e montar As Núpcias Ósseas consumiu cerca de oito meses de 2024. Para além dos samples, o repertório aponta referências distintas. Não é um álbum metido a intelectualoide, mas você vê que os caras têm aversão à superficialidade.
“O ambiente em que cresci, em que fui formado musicalmente, é o dos anos 1970 para os 80. As pessoas tinham muitas referências extramusicais – literárias, cinematográficas, de artes plásticas. Essa é um pouco a nossa escola, de muita referência extramusical”, explica Alex.
“As vinhetas que conduzem o disco são falas do Airton S. Noir”, continua. “Outro cara que tem falas importantes numa faixa, Bardo (Antibardo), é o Leo Lama, filho do Plínio Marcos e dramaturgo. Então, de fato, fomos buscar elementos em fontes muito diferentes.”
ORTOPEDIA FAMILIAR
Entre o genial e a genitália há um ambiente onde habitam obras como a do Displicina. Trabalhos que rompem a mesmice sem, no entanto, foder com tudo. As Núpcias Ósseas quebra a monotonia pop-ostentação moderna com sua pegada tit-flash-death.
“A mim me dá certo desespero essa sensação de ter zilhões de clones das mesmas coisas”, diz Alex, com quem concordo. “Parece um pesadelo, um filme distópico. Na verdade, vivemos numa distopia maluca. Sou assombrado por esta questão: daqui vai para onde?”
No Displicina, Alex virou Alex Jollybones Antunes e Fernando, Fernando Bonesbones Bones. A formação tem mais Bones: Itamar Manguebones Alves, Lola Felixbones-James e Giovanna Bratbones Mota.
Também marcam presença o já citado Akira S (programações), Jorge Pescara (baixo), Lello Bezerra (guitar loop), Alexandre Diniz (bateria), Geoff Rushton (texto e voz) e a dupla Luciana Mancini e Lorenzo Sevieri, nos vocais. Estes sem o selo Bones.
E por que de “as núpcias ósseas”?
Alex justifica na ressonância interessante e no parentesco forçado pela gracinha Bones. “Porque o disco é em torno da questão da morte. E da morte o que sobram são os ossos [‘bones’, em inglês]”. Como somos a família Bones… Veio como uma inspiração. Ficou bom. Chama a atenção.” O tal Operador tem lá seus deslizes, não? Mas é isso. Eis as bodas fúnebres do Displicina!
Ouça As Núpcias Ósseas aqui.
*Fotos: Henrique Inglez de Souza | Capa do disco: Reprodução