Alceu Valença: “Jamais fiz qualquer concessão”

Uma das melhores qualidades do Alceu Valença está em sua pluralidade. É um artista que produz certo por uma linha torta. Ou seja, jamais se entrega à entediante linearidade que vemos nas carreiras de muita gente há anos na ativa. Um cara inventivo, inquieto e multifacetado.

Quando chegou a vez de Piracicaba (SP) receber um novo show seu, em 2019, pude bater um papo com ele. O repertório foi o mais manjado possível, o dos grandes clássicos (“músicas que me acompanham há muitos anos e que o público que frequenta meus shows exige no repertório”). Apesar disso, canções recentes e versões para pérolas de Luiz Gonzaga também puderam ser conferidas.

Esse era apenas um dos diferentes formatos de espetáculo do ícone pernambucano, oriundo de São Bento do Una. Os meses da agenda usual de Alceu Valença driblam a mesmice. Reflexo de sua veia criativa que tanto admiro. “Nunca fui tradicionalista, mas respeito a tradição”, explicou. “Durante o Carnaval, canto somente gêneros essencialmente ligados ao Carnaval de Pernambuco (frevos, maracatus, caboclinhos, cirandas). No período de São João, canto gêneros que constituem as matrizes do forró. E tome xote, baião, embolada, toada…”

Falamos sobre sua relação com o público, segundo ele, fiel, afinado e que conhece e acompanha seu trabalho. Porém, quando se trata de lançar novos trabalhos para manter essa relação quente, Alceu fugiu do clichê e mostrou consciência: “Como o mercado mudou muito, há menos espaço para que uma música nova ganhe visibilidade e se torne um verdadeiro sucesso”.

O enfraquecimento de rádios e TVs, em geral, levou junto a era dos hits. Para um artista de longa estrada, isso cria ou reforça certa amarra ao passado em relação ao público?
Como disse, o fato de estar na estrada com tantos anos de sucesso me permite ser um artista consolidado, assim como vários outros da minha geração e de gerações posteriores. Quem está começando agora precisa encontrar maneiras de se tornar conhecido num momento de transição do mercado que parece não ter volta. Há, claro, nichos e segmentos que podem ajudar o artista a se tornar popular.

Comigo, inventei uma maneira própria de me relacionar com a internet. Crio séries em minhas redes sociais – como cantando no banheiro ou a série Sete Pecados Capitais –, interajo muito com o público, filmo a plateia nos shows e compartilho nas redes. Há vários vídeos em que apareço cantando na rua, seja no Leblon ou em Lisboa, que se tornaram virais. O artista precisa dialogar com seu tempo.

Para um cara consagrado, com um uma discografia tão vasta e importante, os streamings e o quase fim do formato álbum batem de que jeito no peito?
Rapaz, eu quase não escuto música. Sempre foi assim. Meu pai não nos deixava ter radiola em casa, com medo de que seus filhos se tornassem artistas e boêmios. Uma época, minha mulher gravou algumas músicas minhas e de outros artistas em meu celular, para eu escutar durante minhas caminhadas. Sabia que eu ando 10 mil passos, contados por um aplicativo, todos os dias? Aí, passei a escutar algumas coisas, desde quem ouvia nos autofalantes de São Bento do Una, como Gonzaga e Jackson do Pandeiro, passando por Tom Jobim e Gilbert Bécaud. Até Beatles, que não conhecia bem, eu escutei. Uma vez, no início da minha carreira, perguntei ao Hermeto Paschoal o que ele costumava escutar. Ele respondeu: “Nada, para não me influenciar”. Acho que vou mais por esta linha [risos].

Seus próximos discos são sempre um mistério saboroso – haja vista Valencianas ou Amigo da Arte. Qual é o tipo de sonoridade ou assunto que está te beliscando ideias para um novo trabalho?
Isso depende muito. Tenho feito umas melodias de assovio que registro no celular. Outro dia, compus um frevo de madrugada, quando acordei no meio da noite para fazer xixi. Lancei uma série de DVDs e CDs nos últimos tempos. Gostaria de gravar um DVD de forró. Vamos ver…

Qual o tamanho da influência do cinema em sua obra?
Quando eu era garoto, em São Bento do Una, vivia em uma cidade de 5 mil habitantes que tinha dois cinemas. Então, assistia a todos os filmes lançados na época, além das matinês com obras do cinema mudo. Depois, durante a adolescência em Recife, comecei a frequentar as sessões do São Luiz, que exibia muita coisa do neorrealismo italiano e da nouvelle vague francesa.

Um filme que me marcou muito nessa época foi Acossado, de Godard. As meninas diziam que eu era parecido com o ator Jean-Paul Belmondo. Eu assistia e ficava na porta do cinema, fumando um cigarro e passando o polegar sobre os lábios – como o Belmondo fazia [risos]. Tempos depois, fui convidado pelo Sérgio Ricardo para viver o papel principal de A Noite do Espantalho. Participei também do filme Patriamada, de Tizuka Yamazaki.

Quando resolvi filmar meu próprio longa, A Luneta do Tempo, tive aulas de roteiro, mas logo parei, para evitar comparações com outros diretores. E assisti a diversos filmes, principalmente brasileiros, como Cinema, Aspirinas e Urubus, de Marcelo Gomes, Amarelo Manga, de Cláudio Assis, ou O Baile Perfumado, de Lírio Ferreira e Paulo Caldas. Passei a assistir cinema com outro olhar. Mas fiz meu filme da maneira que quis, com uma visão bem própria. Foi uma das melhores experiências da minha vida.

Você já lançou música, filme, livro de poesia… Qual é a investida que tem vontade de explorar e que ainda não o fez?
Ultimamente tenho pensado no roteiro de um novo filme. É uma história de amor passada em Olinda e Lisboa, Portugal, duas das cidades de que mais gosto, e onde tenho casa. Mas ainda está muito no começo. Também penso em publicar um segundo livro, de crônicas e poemas insones. São coisas que escrevo em madrugadas, várias vezes depois de algum show, quando tento pegar no sono e não consigo dormir. Então, só me resta escrever e escrever. E tem saído coisas boas!

Qual é o disco seu que recolocaria no mercado hoje? Te pergunto na esperança de ver seu maravilhoso debute, com o Geraldo Azevedo, novamente disponível.
Eu colocaria todos os meus discos no mercado [risos]! Jamais fiz qualquer concessão à indústria do disco ou embarquei em modismos por imposição das gravadoras. Sempre tive absoluto domínio sobre meu trabalho e fiz meus discos exatamente como queria. Tenho orgulho de todos eles!

Quando fui gravar Cavalo de Pau (1982), apresentei oito músicas e disse que o disco estava pronto (eram músicas como Tropicana, Pelas Ruas Que Andei, Cavalo de Pau, Lava-Mágoas). Os diretores reclamaram que era pouco, que eu precisava gravar mais quatro, e eu bati o pé: “São essas oito, e vai ser um grande sucesso!”. O disco vendeu 1 milhão e meio de cópias na época, e até hoje é um dos meus trabalhos mais reconhecidos.

Foto: Leo Aversa