Nem sempre a rotina de uma banda permite que seus integrantes consigam se dedicar a trabalhos paralelos. Porém, a pandemia, que praticamente paralisou o mundo, acabou criando possibilidades nesse sentido. Julio Andrade, guitarrista e vocalista do Baggios, viu nisso a deixa pra preparar seu primeiro disco solo.
Previsto para sair em outubro, Ikê Maré já teve dois singles divulgados: Nuvens Negras e, o mais recente, Eu São/Curtis Says. Por essas amostras, dá para arriscar com certa dose de segurança que o debute solo desse competente músico sergipano, aqui batizado de Julico, despontará entre os destaques de 2020.
O que te levou a gravar um disco solo?
A vontade de começar algo do zero, de diminuir cobranças em relação à qualidade, repercussão e a uma linha de som já usada na Baggios. Fugir um pouco da rotina. E também por ter músicas que não cabem na banda.
Muitas vezes, rola de compor coisas que não vejo tão dentro do conceito da banda. Por mais que seja superplural, há uma essência na Baggios. Fiquei pelo menos dois anos matutando se teria tempo para esse projeto. Calhou que o mundo todo parou, diminuímos o ritmo de trabalho e achei espaço para realizar esse desejo.
Exploro um lado meu mais da música brasileira dos anos 1970, dentro do universo da música negra (soul, funk, samba-rock). Tudo o que remete a esse tipo de som está em Ikê Maré. É um trampo mais segmentado.
Qual é o Julico que escutamos no álbum, tanto o artista quanto o homem?
O artista e o cidadão são as mesmas pessoas. Como artista, tenho uma exigência, uma direção a seguir. Quando vejo a necessidade de escrever um álbum é porque há uma história que quero contar. Há um conceito por trás de cada letra. O álbum todo tem uma conexão.
Em Ikê Maré, o fio condutor é o tempo, suas virtudes, seus ensinamentos. Queria simbolizá-lo por uma entidade nova que não se comprometesse com nenhum segmento religioso – por mais que tenha um pé no orubá.
É um disco que trata muito da natureza, mas dos rios principalmente. Nas 12 músicas do álbum você encontrará bastante referência às águas e a esse ambiente das marés, do mangue. Algo com que cresci convivendo.
Também é um trabalho que vê a necessidade de falar por uma veia mais sociopolítica. Nuvens Negras foi superdirecionada nesse caminho: é um grito de revolta em relação às queimadas e ao destrato do atual governo quanto à preservação da Mata Atlântica.
O repertório tem uma textura bem crua e cativante.
Gravei 90% do disco em minha casa, com tempo suficiente para experimentações. Depois de quase 20 anos me relacionando com a música de uma maneira bem séria, profissional, quis essa leveza. Então, tem esse ar, essa vibe mais crua, sem aquela megaprodução.
Em fevereiro, gravei a bateria na beira de um rio, no município em que nasci, São Cristóvão. Foi muito simbólico para mim. Um amigo ia fazer um trabalho e disse que poderia gravar. Foi foda! Voltei para casa com a bateria e alguns baixos registrados, e mandei ver só nas vozes, violão e guitarras.
Ikê Maré tem bastante guitarra, mas não de forma protagonista, como é na Baggios. Aparece mais em texturas e bases. Em algumas músicas até aparecem uns riffs, que é minha essência do blues e do rock.
A melodia sai mais fácil quando se mexe em assuntos delicados?
Percebo que quando estou mais sensível, buscando fazer algo mais melodioso, tendem a sair coisas mais bonitas. Quando se atravessa uma situação delicada, você também está bem sensível, e consegue extrair algo que normalmente não conseguiria. Porém, Ikê Maré tem momentos mais solares.
Então, dá para tirar coisas bonitas de um momento difícil, mas também dá para fazer músicas lindas estando em um clima de alegria, de satisfação. Isso já rolou diversas vezes.
Foto: Victor Balde