“Foi um estado de coisas que durou todo aquele tempo. E nunca teve conversa, a não ser recados mandados através de integrantes da equipe técnica, que às vezes pareciam terem sido enviados para me sondar de alguma maneira e depois relatar ao mandante. Até o Carlos Maltz, com quem eu conversava normalmente, estava mais fechado. Parecia existir algum tipo de ordem geral, um toque de recolher.”
O último ano de Augusto Licks nos Engenheiros do Hawaii não foi nada light. Havia uma tensão constante que gradualmente aumentou. Um ar nocivo para a formação clássica da banda gaúcha.
Do lado de fora, uma realidade oposta. O sucesso seguia em dia: o trio saía regularmente nos jornais e revistas, aparecia em programas de TV e tinha uma agenda movimentada, a qual sempre incluía shows de destaque.
Os Engenheiros iniciaram 1993 divulgando Gessinger, Licks & Maltz. Lançado em outubro do ano anterior, o disco já surfava pelas paradas com a música Ninguém = Ninguém. E logo ainda veria surgir seu maior hit, Parabólica.
Em janeiro participaram do Hollywood Rock, em São Paulo e no Rio de Janeiro. Era a segunda edição deles do festival, que naquele ano destacava o grunge. E aí…
“Alguém teve a ideia de nos colocar para abrir a noite do Nirvana”, diz Licks, em tom de crítica. O comentário tem um porquê, dada a experiência ruim, principalmente na capital paulistana. Público hostil e tensão no palco tornaram a noite no Morumbi um calvário.
O ponto é que o estresse não ficou somente ali. A passagem pelo Hollywood Rock acionou uma chavinha de calor que se estenderia pelos meses seguintes. O guitarrista sentia sua batata assando a todo momento, seja nos palcos ou fora deles. Era a corda, que começava a arrebentar para seu lado.
“No trem da banda, eu tinha que me segurar no corredor. Não havia assento para mim. A todo momento alguma decisão era tomada e eu tinha que aceitar sem papo. Alguma atividade era marcada e daqui a pouco desmarcada, shows marcados, shows desmarcados, entrevista marcada para um horário diferente do que me informavam… Um tiroteio de coisas a desafiar minha estabilidade, e eu tinha que cumprir minha responsabilidade com os fãs, com o público que pagava para nos ver e ouvir.”
VÁRIAS VARIÁVEIS
A responsabilidade com os fãs materializava-se num preciosismo tecnocrata. A busca por timbres e pela qualidade do resultado final consumia muito da atenção de Augusto Licks. Coisa de guitarrista louco por equipamentos e absorvido pelo próprio ofício.
Essa dedicação dava trabalho. Por show eram quase vinte solos, sem contar as introduções e variações de timbre complexas. Na retaguarda disso, um set considerável e bastante sofisticado para a época.
“Eram dois cases enormes com diversos racks de efeitos e de processamento de áudio que ainda facilitavam a vida dos técnicos de PA e monitor, pois recebiam o sinal de guitarra por uma via direta independente da parede Mesa-Boogie que eu usava em palco. Era onde eu gastava a grana: equipamentos importados bem caros. E volta e meia algo quebrava, ia para a manutenção.”
Quem avistava Licks no palco, normalmente com suas guitarras Steinberger, nem imaginava o tamanho do trampo tecnológico. Ele justifica a obsessão pela necessidade.
“Precisava me assegurar de que os equipamentos não me deixariam na mão – num trio, seria trágico falhar a guitarra durante show. Eu tinha até preparado um set de pedais como backup, caso desse problema no sistema de racks. Era muita coisa a cuidar. Imprimi um mapa para meu roadie. Até um amplificador extra eu levava, o Mark III, para o caso de dar problema nas potências valvuladas que usava. Felizmente aqueles backups nunca foram necessários, mas tinha que estar preparado para o pior. Às vezes arrebentava corda, por isso levava mais de uma guitarra, e desde 1989 usava sistema sem fio em vez de cabos.”
O preciosismo funcionava, apesar de uns deslizes aqui e ali. Um destes causou prejuízo e deixou bronca: “Após o show do Olympia, meu Quad Preamp todo valvulado ficou em manutenção. Não sei quem levou. Nunca me trouxe de volta.”
ANDO SÓ
A divulgação de Gessinger, Licks & Maltz ainda estava no começo quando o próximo álbum surgiu no radar. Seria um trabalho diferente dos que os Engenheiros do Hawaii vinham lançando. Um projeto semiacústico, com canções retrabalhadas e algumas inéditas.
Produzido por Mayrton Bahia, Filmes de Guerra, Canções de Amor foi gravado no início de julho de 1993, na Sala Cecília Meireles (Rio de Janeiro). Para alinhar os detalhes, o trio passou os três meses anteriores concentrado no apartamento que Carlos Maltz tinha na capital fluminense.
Os ensaios transcorreram bem, numa harmonia atípica. Uma trégua, nas palavras de Augusto Licks. O guitarrista chegou a viajar aos Estados Unidos para comprar guitarras para ele e Humberto Gessinger usarem no álbum.
Filmes de Guerra, Canções de Amor estava sendo mixado quando os Engenheiros partiram para o exterior. A banda fez shows no Japão e depois nos Estados Unidos na primeira quinzena de agosto. De volta ao Brasil, a agenda de compromissos seguiu adiante.
A calmaria dos ensaios havia ficado no apartamento de Maltz. O modus operandi de tensão estava de volta. O guitarrista se sentia cada vez mais isolado e desconfiado. Não havia desentendimentos o tempo todo nem o clichê dos caras que mal podiam se olhar. O gargalo mostrava-se discreto, misterioso.
“As tensões eram constantes, é verdade, mas não generalizadas. Partiam sempre de uma mesma origem. E não tinha briga, até porque a tensão se desenvolvia sorrateiramente, nunca em campo aberto ou olhos nos olhos. Teve raríssimas exceções: um piti nas gravações do Revolta dos Dândis, uma discussão após show em Moscou (1989), e vai parando por aí.”
Como diz o título de uma música de Gessinger, Licks & Maltz, problemas sempre existiram, mas em 1993 pareciam ter ultrapassado o ponto de não retorno.
ACORDA, AUGUSTO!
Uma das passagens mais emblemáticas dos tempos difíceis de Augusto Licks na reta final com os Engenheiros é o show no Bem Brasil. O programa da TV Cultura, exibido em 19 de setembro, mostrou a banda à flor da pele no palco, ainda que em sintonia com o público empolgado.
Eis que ao anunciar a novidade Realidade Virtual, Humberto Gessinger repreende ao microfone: “Acorda, Augusto!”. Uma farpada direta e reta diante de todos. O guitarrista parece não esboçar reação.
“As coisas que aconteciam no palco àquela altura não eram mais surpresas. Já eram esperadas, e não tinha o que fazer. Infelizmente estava acontecendo, e eu não podia me permitir alguma reação que prejudicasse a banda como um todo. Então, o importante era me concentrar no que tinha que fazer com guitarras, violão e teclado, e não era pouca coisa.”
Em registros desse dia encontrados no YouTube dá para ver os três deixando o palco meio sem saco. No caso do guitarrista, segundo o que me disse, a sensação era a de ter sobrevivido. “Algum alívio imediato”, completa.
Mas justiça seja feita e dita. Além do clima tenso regular, os caras estavam esgotados por causa da agenda puxada. No dia anterior, o trio abriu oficialmente a divulgação de Filmes de Guerra, Canções de Amor com um show em Sorocaba (SP). Logo após a apresentação, banda e equipe embarcaram de ônibus rumo ao campus da USP, em São Paulo. Era lá onde ocorria a gravação do programa.
“O show no Bem Brasil foi particularmente difícil para todos nós”, conta Licks. “Não pudemos descansar bem, pois era um show mais cedo, com o agravante de ser à luz do dia. Condições inóspitas. A compensar, tínhamos a favor um público maravilhoso e estávamos afiados no que nos propúnhamos a fazer no palco.”
FINITA HIGHWAY
Filmes de Guerra, Canções de Amor saiu em outubro. Nesse período, os Engenheiros rodaram por diversos estados. Uma parte do público já notava algo de errado no trio, e nem era por causa da recorrente malhação na imprensa. Era a crise causando sintomas.
“Fãs percebiam e não entendiam, e se fossem contar a alguém, era difícil acreditar”, observa Licks. “Foi quase um ano todo assim. Os motivos do clima ruim? Não saberia dizer. Não sou eu quem deveria responder.”
Mesmo digerindo tanta pressão, o guitarrista permanecia de pé – por vontade ou inércia. Sair dos Engenheiros não estava em seus planos. “Como? Nós tínhamos contrato com gravadora, estávamos comprometidos a gravar mais álbuns. Infelizmente, consolidou-se uma forma de poder massacrante que acabou por gerar uma situação de impasse e que matou o espírito de banda.”
O ritmo permaneceu nessa toada até o encerramento das atividades em 1993, com uma temporada na capital paulista. Foram três shows, entre 26 e 28 de novembro, na hoje extinta casa Olympia. Trio no palco, tensão embutida e plateias empolgadas. Tudo conforme o padrão dos meses anteriores, só que debaixo dos rumores de uma dissolução na banda.
O que Augusto Licks não sabia é que aquela seria sua última aparição pública como integrante dos Engenheiros do Hawaii. “Eu estava tão isolado que nem sabia que já corria o boato de que sairia da banda. Fãs me contaram isso algum tempo depois.”
Numa reunião na semana seguinte aos shows de São Paulo, Licks encontrou-se com a empresária do trio, Carmela Forsin, e Carlos Maltz. Humberto Gessinger não estava. O baterista comunicou que Gessinger o chamou para montar um novo grupo e que os Engenheiros iriam acabar.
Percebendo que a corda havia finalmente arrebentado para seu lado, o guitarrista virou-se e foi embora. A partir dali vivenciaria dias intensos de reportagens, declarações à imprensa, histórias mal contadas, a polêmica sobre o registro do nome Engenheiros do Hawaii…
A repercussão de sua saída gerou um espírito avesso à exposição em Licks. Por isso, ele optou por dar um tempo na carreira e mergulhar num profundo e duradouro silencio. Sumiu de vista de 1994 em diante. Sua primeira entrevista aconteceria somente em 2016, para mim, por sinal, numa pauta destinada à revista Guitar Player.
LICKS & MALTZ
A reunião da formação clássica dos Engenheiros do Hawaii virou assunto recorrente ao longo dos anos. O mais próximo disso materializou-se em 2024, quando Augusto Licks e Carlos Maltz voltaram a tocar juntos. Uma iniciativa bancada pela banda Engenheiros Sem Crea, de Sandro Trindade.
“Já se passam 31 anos da minha saída, e também já faz muito tempo que esse assunto não me incomoda. Revendo pelo espelho retrovisor da memória, o que enxergo é um lago límpido e calmo. E 2024 tem sido um ano muito feliz, com meu reencontro com o Carlos Maltz – ele e eu, integrantes da época em que Engenheiros do Hawaii era uma banda”, reflete.
“Acho que demorou demais nossa reunião. Poderia, e deveria, ter acontecido bem antes, mas ao menos ainda estamos vivos e plenamente capazes. Prontos para proporcionar noites de felicidade musical por esse país afora.”