Camisa de Vênus: engula ou cuspa fora

Camisa de Vênus corresponde a capítulos importantes do rock nacional. Na turnê atual, eles contemplam cada disco que lançaram. E os 44 anos de carreira são a razão pela qual cada setlist tem sido diferente.

“É bom, porque dá para enfatizar mais canções que não tocávamos há anos”, explica Marcelo Nova. “Por exemplo, Controle Total, primeira música que gravamos, em 1982.”

O vocalista cita a faixa presente no compacto de estreia do quinteto. Um marco na música baiana, segundo ele. “Na época, evidentemente, não sabia disso. Tomei uma música emprestada do Clash e fiz uma letra falando sobre Salvador. Algo que desmistificava aquela magia da música baiana: do axé, da alegria… Virou do avesso a tradição de letras sobre a Bahia.”

De lá pra cá, muita coisa rolou. Vieram discos, sucessos, altos e baixos. O que prevaleceu foi a essência carismática do Camisa. Marcelo e Robério Santa são os únicos de pé da formação original. Drake Nova e Leandro Dalle (guitarras) e Celio Glouster (bateria) fecham o time atual, firme há quase dez anos.

Talvez os conservadores torçam o nariz para essa encarnação. Mas isso não importa ao Camisa de Vênus. Nunca importou. A postura “dane-se” e a isenção permanecem sendo seu melhor atestado de autenticidade.

“Estamos na estrada do mesmo jeito que entramos: sempre correndo pela contramão”, ressalta Robério. “Não adianta, é contra o vento, contra a correnteza e na contramão.”

Mesmo após quatro décadas eles jamais se entregaram ao marasmo criativo. Sua discografia mostra que o tempo não parou. “Fui sentindo a necessidade de não ficar preso a determinadas armadilhas naturais a todas as bandas”, comenta Marcelo, que destaca seu divisor de águas: a música A Ferro e Fogo (1986).

“Na época, era tudo o que não se permitia no tal do rock dos anos 1980. Gravar uma faixa com quase oito minutos e orquestra sinfônica seria imperdoável. Ali percebi que não precisava ficar atrelado a essa coisa da rebeldia pela rebeldia. Fui embora, e aqui estou eu [risos].”

É esse o combustível que embalará o show de Piracicaba neste dia 21. O de uma força genuína do rock. Não tem nada a ver com sucesso comercial, até porque o rock mainstream atual é um treco mimizento, semiapático, lobotomizado e nada contestador.

“Direta ou indiretamente, tentam sempre lhe colocar dentro de uma gaveta com um rótulo”, alerta Marceleza. Em 2024, relevância está no público que vai aos shows. Nesse ponto, o Camisa de Vênus se sobressai. Suas plateias tem desde a velha guarda a fãs mais jovens.

“São canções de textos atemporais”, reflete o vocalista. “Continuo escrevendo sobre temas que rondam o ser humano desde que o mundo é mundo. Quando você consegue colocar em palavras uma ideia desafiadora, criativa ou contestadora sem ser adolescente, e ainda motiva garotos a comprarem ingresso, isso é muito bom. Me sinto lisonjeado.”

Um privilégio na era dos streamings, da indiferença à obra das bandas e do crescimento de tecnologias como a inteligência artificial. O Camisa parece imune. Emenda turnê atrás de turnê e lança discos novos. Claro, ainda encara uns cancelamentos aqui e ali. Ou seja, tudo flui normalmente para eles.

“As tentativas de cancelamento se sucedem, mas não são bem-sucedidas”, relativiza o vocalista. “Não sou afiliado a partido político, não tenho empresas me patrocinando, não dou a mínima para likes e dislikes. Evidentemente, pago o preço por isso. Mas temos que pagar nosso preço para fazermos a coisa do jeito que queremos.”

E em se tratando de internet, o preço vem sempre salgado pela patrulha do politicamente correto. Quem aqui se lembra da recente polêmica com a música Silvia? Porém, Robério Santana é certeiro com sua estilingada: “Quer fazer boicote? Que faça! Não mudaremos por causa de ninguém. Sou politicamente incorreto – nós somos. É como sempre foi: engula ou cuspa fora!” Por essas e por outras, tiro meu chapéu a esses caras. Não é moleza encarar 44 anos de carreira sem perder o topete. Um show deles soa quase como um oásis a quem gosta de rock rock.

*Matéria publicada na minha coluna Playlist, no jornal A Tribuna Piracicabana, em 20/09/2024
*Foto: Ana Karina Zaratin